
Uberlândia (MG), cidade do Triângulo Mineiro de 700 mil habitantes, é um símbolo da condução irresponsável da pandemia da Covid-19 no Brasil. O prefeito Odelmo Leão (PP) é aliado do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e segue à risca a cartilha do mandatário: defende “tratamento precoce” e preconiza isolamento cheio de exceções que acaba sendo inócuo. A receita do colapso resultou em 1.371 vidas perdidas em um ano de pandemia. É o que revela reportagem da revista piauí.
De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Uberlândia tem uma taxa de 198 mortes por 100 mil habitantes. Acima da média no Brasil, com taxa de 132 óbitos por cem mil habitantes. Todos os leitos de UTI da cidade símbolo da negligência bolsonarista estão ocupados, demais leitos de emergência, idem. Não há médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e profissionais da saúde suficientes para a demanda.
Em julho de 2020, Uberlândia assumiu por período a dianteira de casos de Covid-19 em Minas Gerais. Quatro dias depois dessa marca preocupante, o prefeito anunciou um novo protocolo de combate à pandemia: ivermectina e hidroxicloroquina de graça para a população. Em seguida, flexibilizou o decreto de isolamento, liberando feiras livres, lanchonetes e conveniências.
O Tribunal de Justiça de Minas (TJMG) mandou Leão recrudescer, enquadrando-o ao plano estadual de enfrentamento da pandemia Minas Consciente, mas a ordem durou pouco. O prefeito recorreu e, em meados de julho, a cidade de 700 mil habitantes bateu a marca de 10 mil infectados – ato contínuo, liberou até shopping center. Duzentas pessoas morreram da doença até aquele mês.
Uberlândia colapsou sistema de saúde
Após oito meses, no dia 2 de março deste ano, o prefeito admitiu que o sistema de saúde de Uberlândia se exauriu. Com 100% dos leitos de UTI ocupados, 184 pacientes esperavam por vagas, e outros já tinham sido transferidos para cidades próximas.
“A rede de saúde de Uberlândia colapsou. Friso: colapsou. A situação é caótica. A gente pediu, a gente apelou para que todos compreendessem o momento que vivíamos, para que não chegássemos a essa situação. Infelizmente, muitos não ouviram e duvidaram dessa doença. Hoje a nossa situação é a pior de todas as que vivemos.”
Odelmo Leão, prefeito de Uberlândia
Em 4 de março, Bolsonaro visitou a cidade sem usar a máscara de proteção facial, o que já é usual. Foi recebido pelo prefeito e ex-colega de Parlamento que usava o item de proteção. A presença do presidente em Uberlândia causou aglomeração de apoiadores, muitos sem máscara ou com o acessório usado de forma incorreta.
Naquela ocasião, o mandatário do país discursou contra o isolamento social e defendeu o “tratamento precoce” contra o coronavírus. Argumentou que quem defende esse protocolo sem comprovação científica “passou a ser criminoso no Brasil”.
No entanto, em Uberlândia, o “feijão mágico” defendido pelo presidente é praticamente obrigatório. O Ministério Público Federal conseguiu na Justiça que o médico que não receitar o “tratamento precoce” seja denunciado por pacientes e fique sujeito a multa de R$ 10 mil. Não há, por ora, registro de punições judiciais.
Bolsonaro também falou sobre os efeitos colaterais econômicos sob os aplausos da plateia de apoiadores.
“Se todo mundo ficar em casa, vai morrer todo mundo de fome. […] O desemprego leva à miséria, à depressão, a uma série de outros problemas, que matam muito mais do que o vírus.”
Jair Bolsonaro
Prefeito foi à Justiça para reabrir bares e restaurantes
Em setembro de 2020, depois de atingir pela primeira vez 100 dias seguidos com registros de óbitos, Odelmo Leão conseguiu no Supremo Tribunal Federal reabrir bares e restaurantes. Em outubro, o prefeito anunciou a saída da cidade do Minas Consciente, plano de contingência do governo estadual de Romeu Zema (Novo) para enfrentar a pandemia. Quinze dias depois, Uberlândia registrou o recorde de 140 dias consecutivos de óbitos.
Em novembro e dezembro, seguindo tendência nacional, a pandemia arrefeceu em termos relativos ao que acontecera até então. Mas, com a virada do ano, a doença se mostrou mais agressiva inclusive entre grupos que antes não eram considerados de risco.
A região de Uberlândia voltou a ser um dos focos mais graves da pandemia em Minas. O número de mortes explodiu. De 27 óbitos registrados em dezembro, o número saltou para 76 em janeiro e 257 em fevereiro, somando ao final do mês passado 1.074 mortes desde o início da pandemia. Em março foram 284 até o dia 12, segundo dados da prefeitura.
Protesto de comerciantes de Uberlândia
Com o esgotamento do sistema de saúde da cidade, em fevereiro, Odelmo Leão baixou medidas para tentar conter o avanço da doença. Proibiu a venda de bebidas alcoólicas das 18h às 5h, fechou shoppings, bares, restaurantes e clubes sociais aos finais de semana – mas os manteve em funcionamento de segunda a sexta. Após quinze dias, precisou ser mais duro e fechou o comércio. Numa entrevista para detalhar as medidas, exclamou mais de uma vez: “Lockdown não!”
No último dia 12, comerciantes voltaram às ruas para protestar, como têm feito desde o início da pandemia. O objetivo é voltar a flexibilizar as atividades.
Desde o agravamento da pandemia em 2021, o prefeito não falou mais em hidroxicloroquina ou “tratamento precoce”. Sua aposta agora é na imunização. Publica fotos de idosos sendo vacinados e faz anúncios de intenção de compra de mais doses. A cidade diz ter aplicado até agora quase 45 mil doses de vacina.
Uberlândia não faz parte da ação do Governo do Estado
O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que também minimizou a necessidade de isolamento inicialmente, foi mais enérgico ao reagir às evidências que um ano de pandemia trouxe. Em abril passado, ele criticou prefeitos que impuseram medidas restritivas de circulação. Em março de 2021, contudo, decretou lockdown no noroeste do estado e no Triângulo Norte, onde fica Uberlândia.
Onda Roxa, como o governador batizou a ação, determina toque de recolher das 20h às 5h, libera somente quem trabalha em serviço essencial para transitar e obriga o uso de máscaras em qualquer espaço público ou privado. O problema é que a Onda Roxa faz parte do plano Minas Consciente, do qual Uberlândia se retirou com ação judicial. Reservadamente, auxiliares de Zema dizem que a cidade adotou medidas tão restritivas quanto as impostas pelo governo estadual, portanto não há prejuízo no combate ao vírus.
O médico Alair Benedito, professor aposentado da Universidade Federal de Uberlândia e ex-diretor do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, que é referência para Covid na região, avalia que o prefeito Odelmo Leão está perdido.
Benedito aponta insuficiência da rede de atendimento desde antes da pandemia. Afirma que o prefeito tenta achar culpados e transfere a responsabilidade para o hospital, onde não há número de leitos suficiente, falta estrutura, pessoal e espaço.
“Não toma as medidas adequadas, porque sofre muita pressão da iniciativa privada e, como recebeu financiamento eleitoral do empresariado local, mantém seus compromissos políticos com esses grupos e as medidas de distanciamento social foram negadas.”
Alair Benedito, médico
Juliana Markus, médica do Hospital de Clínicas de Uberlândia que atua na linha de frente desde o início da pandemia, avalia que a gravidade da crise sanitária não foi reconhecida pelo executivo municipal. Além das flexibilizações do isolamento e do surgimento de novas cepas, a médica critica a insistência no tratamento à base de hidroxicloroquina e ivermectina, que não apenas não têm eficácia comprovada para Covid como ainda oferecem risco de efeitos colaterais graves.
“As autoridades públicas defenderam o kit profilático, que geram ilusão de que a pessoa que contrair o vírus vai ficar com caso menos grave e por isso pode se expor, uma falsa sensação de segurança. Não tem embasamento na realidade e contribui para o momento crítico que vivemos.”
Juliana Markus, médica
No último final de semana, apesar dos alertas de autoridades de saúde pública do mundo todo, uberlandenses foram protestar nas ruas pedindo tratamento precoce e reabertura do comércio, em pleno pico da pandemia.
Em fevereiro deste ano, o prefeito reclamou que a população não colabora. Argumentou que há falta de consciência coletiva. Mas em julho do ano passado ele cantava vitória.
“Se Uberlândia tem os resultados que tem é porque tivemos a responsabilidade de testar a população, adquirimos os remédios necessários, a hidroxicloroquina, que tem a discussão, mas eu já disse que o professor [secretário de saúde municipal] liberou, está em todas as farmácias da nossa rede. É o médico receitar, se não achar no mercado, pode ir à farmácia da prefeitura, que nós vamos fornecer o produto.”
Odelmo Leão
Procurada pela reportagem da revista piauí, que produziu a reportagem, a prefeitura não esclareceu os critérios que a levaram a flexibilizar o isolamento em diversas ocasiões, nem se ainda recomenda o “tratamento precoce” ou como avalia o comportamento do presidente Bolsonaro diante da gravidade da Covid-19 no país e na cidade.
Com informações da piauí