A maior potência econômica do mundo guarda um passado histórico segregacionista e concebedor de idealizações racistas que se espalharam pela América e pelo mundo
A segunda parte da matéria ‘Racismo: Made in USA’ aprofunda nas concepções antiquadas e preconceituosas sobre a mulher negra e apresenta as suas origens e raízes, além de apresentar a repercussão até a atualidade destes estereótipos.
Confira aqui a primeira parte.
A mulher negra insaciável
Segundo a bíblia, Jezebel (ou Jezabel) foi a rainha de Israel e esposa do Rei Acab. Com o tempo, a rainha Jezebel suprimiu os rituais tradicionais e passou a cultuar Baal (também conhecido com Belzebu) de forma ostensiva e dominadora, sacrificando crianças em nome da santidade e inocência. Com uma conduta inadequada e reprovada pelos israelitas, acabou sendo morta por defenestração.
Conhecida pela sua beleza e misticismo, Jezebel passou, com o decorrer dos tempos, de uma personagem bíblica a sinônimo de uma mulher sedutora, sem escrúpulos e pecadora.
No período vitoriano, a imagem da mulher obediente e temente a Deus era a européia, sendo considerado o molde de como deviam se portar e agir. Contudo, no período colonizatório, os europeus entraram em contato com mulheres africanas escravizadas e atribuíram àquela semi-nudez, habitual nos territórios tropicais, à promiscuidade.
Possuindo a poligamia como aspecto cultural das aldeias africanas, os colonizadores deturparam a significação da característica (já problemática por si) e atribuíram à luxúria incontrolável da mulher preta. Sendo pagãs, segundo a lente cristã, a comparação com a rainha de Israel logo foi costurada, estigmatizando as mulheres de pele escura por séculos, afirma o jornal acadêmico da Universidade Federal de Juiz de Fora.
O estereótipo foi tão marcante que, por muito tempo, legitimou atos de abuso e estupro contra mulheres negras, simplesmente por serem relacionadas a promiscuidade e a luxúria. E a prática perdurou mesmo com o fim da escravatura e atravessou as fronteiras do país.
A imagem sexualizada da mulher negra “fogosa” ainda é fortemente utilizada até os dias atuais, ganhando repaginações de acordo com a mídia que fomenta este estereótipo racista que possui o seu cerne na violência contra as mulheres pretas.
“Angry Black Woman”: a mulher negra raivosa
Você já viu isso em filmes e séries por diversas vezes: a mulher negra irritada, que sempre grita com o marido e assume as rédeas do relacionamento por seu “temperamento forte”. Ela não liga para a opinião de ninguém e está sempre nervosa. Lembrou de algum personagem?
Durante o período da escravidão havia o culto à verdadeira feminilidade, ideologia que marcou qual era o padrão de comportamento feminino na época.
Como as mulheres pretas eram tratadas como objetos de servidão e satisfação dos prazeres do homem branco, muitas vezes descaracterizada até como um ser feminino, a concepção de feminilidade não existia. E esse distanciamento de ideais provocado pelo racismo e machismo que idealizaram a mulher negra raivosa.
O estereótipo reforça o oposto do padrão de feminilidade estabelecido: mulher forte e castradora, que domina o homem, “rouba” seu papel na família e geralmente afasta suas crianças e seu companheiro de tão nervosa que ela é.
Alguns cientistas sociais do período pós-escravidão afirmavam que a culpa do desemprego, pobreza e suposta passividade do homem negro pra crescer na vida não era de qualquer política social ou econômica, mas sim, do status matriarcal da dominância da mulher negra descontrolada sobre o homem.
A retratação se tornou ainda mais forte após a personagem Sapphire, do programa humorístico de rádio da década de 50, Amos ‘n’ Andy. O programa foi concebido por Freeman Gosden e Charles Correll, dois atores brancos que interpretaram os personagens Amos Jones e Andy Brown imitando e zombando do comportamento e do dialeto negros. O show foi ao ar no rádio entre 1928 e 1960, com interrupções intermitentes.
Segundo a Ferris State University, a versão televisiva do programa, com o primeiro elenco totalmente preto da rede de televisão, foi ao ar na CBS de 1951 a 1953, com reprises sindicalizadas de 1954 a 1966. Foi removida, em grande parte, pelos esforços da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor e o movimento dos direitos civis. Tanto no programa de rádio quanto no programa de televisão, Amos ‘n’ Andy era extremamente popular, e isso era lamentável para os afro-americanos porque popularizou as caricaturas raciais dos negros. Os americanos descobriram que os negros eram cômicos, não como atores, mas como uma raça.
A maior polêmica se devia a Sapphire Stevens. Interpretada por Ernestine Wade, a personagem era uma esposa negra retratada como astuta, impaciente e manipuladora. A polêmica do papel foi tanta que rendeu um documentário ‘Amos ‘n’ Andy: Anatomy of a Controversy’ (Amos ‘n’ Andy: Anatomia de Uma Controvérsia, em tradução livre), que destrinchou a retratação preconceituosa da mulher afro-americana.
Nos dias atuais, o estereótipo de Sapphire ainda permanece nas mídias televisivas, dando continuidade a visão deturpada da mulher negra e que a posiciona como perigosa, instável, dominada pelas emoções e incapaz de agir racionalmente. Os exemplos mais famosos são Rochelle Rock, personagem da série estadunidense Everybody Hates Chris (Todo Mundo Odeia o Chris, no Brasil) interpretada pela atriz Tichina Arnold; e a Annalise Keating, de How To Get Away With Murder (Como Defender um Assassino, no Brasil), interpretada pela ganhadora do Oscar, Viola Davis.
Welfare Queen: Rainhas do Bolsa-Auxílio
O termo ‘Welfare Queen’ pode ser traduzido, literalmente, como “Rainha do Bolsa Auxílio”. Com uma origem sem o cunho racial e que tinha como maior objetivo insultar mulheres de menor poder aquisitivo nos Estados Unidos.
Contudo, com o crescimento do racismo e das solicitações de auxílio governamentais na década de 60, a ofensa logo caiu na boca na comunidade racista e colocou as mulheres pretas como responsáveis pelo sobrecarregamento do sistema e violadoras do espírito americano.
De acordo com o Jim Crow Museum of Racist Memorabilia, o direcionamento do perjúrio se deveram ao estereótipos previamente estabelecidos na sociedade sobre as mulheres negras. Tidas como seres de apetite sexual insaciável e que não respeitam a moral pelas lentes racistas da época, elas não teriam problemas em ter vários filhos e depender dos programas de auxílio do governo.
A desmoralização ocasionada pelo termo Welfare Queen foi utilizada por parte da população classe média para justificar corte de gastos governamentais com o social e denunciar os maus modos de mulheres negras e pobres que, segundo eles, estão naquela posição por não terem controle financeiro e por serem preguiçosas.