
Alvo da CPI da Pandemia no Senado, uma ONG autorizada pelo Ministério da Saúde a negociar a compra de vacinas para o Brasil buscou doses com uma empresa nos Estados Unidos gerenciada por um policial aposentado que chegou a ser afastado das ruas por suspeita de corrupção. A sede da empresa, que foi aberta há seis meses e não comprovou ter meios de disponibilizar os imunizantes, é registrada no endereço dos fundos de um escritório de advocacia especializado em pequenas causas indenizatórias, localizado no Queens, em Nova York.
A reportagem do jornal Folha de S. Paulo afirma esteve no local na semana passada e foi informada pelo sócio do escritório, Darmin Bachu, que a empresa que supostamente vende vacinas funcionaria em outro lugar, a poucos quilômetros dali. Nesse novo endereço fica um cinema de bairro, também gerenciado pelo policial aposentado. Trocas de mensagens obtidas pela Folha apontam que, em nome do governo brasileiro, a Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (ONG Senah), uma entidade privada, discutiu com a empresa americana a possibilidade de compra de vacinas da Pfizer e da AstraZeneca, além de luvas e seringas. A AstraZeneca nega que negocie venda para empresas privadas.
Criada em janeiro deste ano, a firma novaiorquina ganhou o nome de International Covid Solutions Corp e, segundo registros nos EUA, é presidida por Charles Ramesar e gerenciada pelo policial aposentado de Nova York Rudranauth Toolasprashad, conhecido como Rudy. Já a Senah é comandada pelo reverendo Amilton Gomes de Paula, que foi convocado a depor na CPI da Pandemia e deve comparecer ao Senado na terça (3).
Outras negociações irregulares de vacinas
A ONG entrou no radar da comissão após outras negociações virem à tona. Com autorização do Ministério da Saúde, a Senah discutiu, por exemplo, a compra de 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca por meio da empresa Davati Medical Supply, também localizada nos EUA. A chancela do governo para as negociações foi concedida por Laurício Monteiro Cruz, então diretor de Imunização do Ministério da Saúde, que acabou exonerado depois que o caso foi revelado.
O policial militar e vendedor de vacinas Luiz Paulo Dominghetti Pereira disse no início de julho que Roberto Ferreira Dias, então diretor de Logística do Ministério da Saúde, pediu propina para que a Davati fechasse o contrato com o governo brasileiro. Dias foi exonerado e nega as suspeitas. Já a negociação da ONG com a International Covid Solutions Corp aconteceu em paralelo à feita com a Davati. Os representantes da Senah tratavam sobre a venda de vacinas com o gerente da empresa, Rudy, desde o início do ano.
Em um comunicado de fevereiro, Rudy diz à Senah que iria providenciar ao Brasil 4 milhões de doses do imunizante da AstraZeneca, 4 milhões de luvas e 4 milhões de agulhas e seringas para “agências governamentais e companhias privadas”. No entanto, Rudy pede uma carta de comprovação, assinada pelo governo e empresas, com o compromisso de aquisição dessas vacinas, o que não aconteceu.
Em outro comunicado, de maio, a Senah afirma que iria se reunir com o governo brasileiro e que havia interesse oficial na compra dos imunizantes, mas acrescenta que seriam necessárias provas documentais da existência dessas doses, o que também não foi providenciado por Rudy.
Procurados, integrantes da ONG e da empresa nos EUA dizem que essas negociações não prosperaram e sinalizam desconfiança uns dos outros.
Investigação por recebimento de propina
Segundo a imprensa americana, Rudy, que tem origem guianense, foi investigado num escândalo de suspeita de recebimento de propina no início dos anos 2000, mas acabou não sendo processado.
Reportagem do The New York Times afirma que, enquanto era investigado, ele teve que entregar a arma e o distintivo e passar a fazer trabalhos administrativos.
De policial, passou a gerente de cinema e da International Covid Solutions Corp, cujo endereço —o mesmo dos fundos do escritório de advocacia— é registrado em uma movimentada avenida do bairro Jamaica, no Queens, repleto de comércio e numerosa população de imigrantes.
Mas antes de conseguir identificar a casa, com numeração quase apagada em uma caixa de correio enferrujada, o visitante pode ler o anúncio: “Acidente? Ferido? Entre agora! Vamos conseguir o máximo de dinheiro para seus ferimentos.”
Outras empresas
Na tarde de segunda-feira (26), a Folha esteve no local e visitou o escritório de advocacia Bachu & Associates. Um funcionário explicou que, entre as salas apertadas, existem outras empresas —”talvez umas três ou quatro”— mas não sabia nada sobre a venda de imunizantes. “Estou sempre no telefone, bastante ocupado e, com a pandemia, tem muita gente trabalhando remoto”, afirmou.
Ele disse que havia ouvido falar em Rudy, mas não conhecia Charles Ramesar, e passaria o contato da reportagem para o chefe do escritório.
Além da empresa envolvida na negociação de vacinas com a Senah, o escritório de advocacia também é endereço de outra firma criada por Charles Ramesar, a Covid 19 Rapid Teste Nyc Inc., registrada 12 dias antes da criação da International Covid Solutions Corp.
Durante dois dias, a Folha telefonou diversas vezes e visitou os endereços comerciais e residenciais registrados em nome dos supostos sócios da International Covid Solutions Corp, mas não os encontrou.
Por telefone, o advogado Darmin Bachu disse que representava a empresa e que seus clientes só falariam através dele. Bachu afirmou que, na verdade, a firma funcionava a menos de 3 km de seu escritório, minimizando as múltiplas e sobrepostas localidades e o fato de não haver nenhuma prova de existência da empresa e de seu acesso às vacinas para comercialização.
No novo endereço fornecido por Bachu, os anúncios estampavam entretenimento: “Velozes e Furiosos”, “Space Jam” e “Viúva Negra” eram alguns dos filmes em cartaz no decadente cinema onde, segundo o advogado, a International Covid Solutions Corp fica localizada.
Empresa tentou vender vacinas ao governo
Na terça (27), um homem disse que era o gerente do cinema naquele dia, mas confirmou que o negócio é, geralmente, comandado por Rudy. “Só que ele não está aqui hoje, não sei quando volta e, se você quiser falar com ele, é melhor ligar para Darmin Bachu, advogado dele.”
Bachu disse ainda que a empresa negociou também com outros governos da América do Sul e que, no caso do Brasil, representantes da International Covid Solutions Corp estiveram no país para tentar fechar negócio com o governo brasileiro, mas as tratativas não deram certo e seus clientes “sentiram como se estivessem perdendo tempo”. “[Eles] se encontraram com pessoas que alegavam ter contato com o governo brasileiro, mas nunca se encontraram com um funcionário do governo diretamente”, diz Bachu.
O advogado afirma que seus clientes têm acesso a fornecedores da Pfizer e da AstraZeneca para a obtenção de vacinas, mas que não pode divulgar os nomes com quem seus clientes negociam o acesso e a venda dos imunizantes. Nas trocas de mensagens obtidas pela reportagem, a Senah também tenta negociar com a International Covid Solutions Corp a aquisição de vacinas contra o H1N1 para o governo dos Emirados Árabes Unidos.
No texto enviado por um “agente humanitário” da ONG, o interlocutor argumenta que os imunizantes contra o H1N1 seriam usados para a “imunização da população dos Emirados Árabes Unidos, por conta da Copa do Mundo de 2022, que será realizada no Catar”. Procurados, representantes da Senah não se manifestaram.
Dominghetti, que negociou supostos imunizantes da Davati com o governo, afirma que não fez negociações com Rudy Toolasprashad, mas acrescenta que “a Senah tinha esse contato e conversas com ele”. “Sei que ele [Rudy] tinha oferecido vacinas à Senah, segundo o reverendo [Amilton]. Mas não participei de nenhuma tratativa”, disse Dominghetti. A Davati, em nota, afirma que não conhece Rudy ou a International Covid Solutions Corp.
Intermediários no Brasil, Chile e Paraguai
Darmin Bachu se apresenta como advogado da International Covid Solutions Corp. e diz que a empresa tentou negociar vacinas com o governo brasileiro, via intermediários, mas não conseguiu fechar negócio.
O fundo do escritório de Bachu, no distrito do Queens, em Nova York, serve também como endereço de registro da firma em nome de Charles Ramesar e gerência de Rudy Toolasprashad, que, segundo o advogado, seriam responsáveis pela comercialização de imunizantes e outros produtos.
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, Bachu afirma que Ramesar e Rudy têm acesso a fornecedores de imunizantes da Pfizer e da AstraZeneca e trabalham com intermediários para vendê-los a governos de países da América do Sul. Acrescenta, porém, que, por questões de confidencialidade, não pode divulgar os dados desses terceiros, com quem seus clientes negociariam o acesso e a venda das vacinas.
Com informações do jornal Folha de S. Paulo