
O Arquivo Lésbico Brasileiro (ALB) reúne documentos que mostram a repressão da ditadura militar direcionada a mulheres homossexuais e também a luta do movimento lésbico para incluir a criminalização da homofobia na Constituição de 1988. A iniciativa é de pesquisadoras de várias partes do país que querem agrupar documentos históricos sobre lesbianidade no Brasil e disponibilizá-los ao público.
“A maior parte das mulheres do grupo pesquisou questões relacionadas à lesbianidade, e a gente começou a se encontrar a partir de demandas das nossas pesquisas, percebendo o quanto a circulação desses materiais entre a gente facilitava o nosso trabalho”, diz Julia Kumpera, mestre em história pela Unicamp e diretora financeira do arquivo. Ela estuda as políticas sexuais da ditadura militar no Brasil e a história dos ativismos lésbicos.
Parte do acervo foi doado pela ativista lésbica Marisa Fernandes. Nela, estão notas como a que abre esta reportagem, que trata de uma ação do delegado José Wilson Richetti contra redutos das lésbicas de São Paulo no final da ditadura, chamada, segundo a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, de “Operação Sapatão”.
“Temos notas que elas faziam chamando para atos, especificamente contra a violência policial. O Richetti promovia operações contra tudo que eles consideravam ‘vadiagem’”, diz Paula Silveira Barbosa, diretora-geral do ALB, que é mestre em jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Ditadura persegue comunidade LGBTQIAP+
O delegado Richetti é citado pela Comissão da Verdade paulista como perseguidor da comunidade LGBTQIA+ da capital. “Essas ‘rondas’ comandadas por José Wilson Richetti, chefe da Seccional de Polícia da Zona Centro desde maio de 1980, tinham por objetivo ‘limpar’ a área central da presença de prostitutas, travestis e homossexuais”, diz o texto da comissão.
Foi uma dessas operações que, em 1983, resultou no que hoje é lembrado como o “pequeno Stonewall brasileiro”, em referência à revolta LGBTQUIAP+ após a invasão policial de um bar nova-iorquino em 1969.
Na versão brasileira, ativistas do Grupo de Ação Lésbica-Feminista (Galf) foram proibidas de vender no Ferro’s Bar, que entre os anos 1960 e 1990 foi um reduto lésbico no centro de São Paulo, o jornal que produziam, o Chana com Chana —nome que dispensa explicações. Em resposta, ativistas ocuparam o bar na noite seguinte.
O protesto saiu assim, em uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo que ocupava duas colunas de texto em 21 de agosto de 1983: “A noite em que as lésbicas invadiram seu próprio bar”. O texto é parte dos documentos que farão parte do arquivo.
Outras reportagem da Folha de S. Paulo, de 29 de maio de 1985, reprodução de uma matéria da Folha da Tarde, sem data, em cujo título lê-se: “Censura ameaça Hebe Camargo”. Por quê? É que a apresentadora havia chamado para seu programa, exibido à época na TV Bandeirantes, Rosely Roth, integrante do Galf e uma das pioneiras do movimento lésbico brasileiro. Segundo o texto, Hebe foi acusada pela censura de “indução e apologia ao homossexualismo”.
Financiamento coletivo
A perseguição de lésbicas pela censura da ditadura era comum, diz Kumpera. “Existem pareceres da censura sobre músicas, peças de teatro e filmes que faziam retrato da lesbianidade, ou tinham algum ato, alguma cena erótica ou afetiva e que chamam aquilo de ‘perversão sexual’, ‘conteúdo que contribui para a má educação do povo’ e várias outras coisas.”
Para viabilizar a manutenção dos materiais, o ALB lançou uma campanha de financiamento coletivo que tem como meta arrecadar cerca de R$ 10 mil até esta segunda-feira (2). “O objetivo é comprar material para digitalizar os documentos e para manter a versão física, como estante, prateleira, kit de higienização porque alguns são muito antigos”, afirma Barbosa.
Também serão digitalizados e disponibilizados exemplares do Chana com Chana, o jornal independente produzido pelo Galf e que circulou entre 1981 e 1987. Uma das funções do panfleto era a de organizar o movimento lésbico e LGBT+ de forma mais ampla para pressionar os parlamentares que elaborariam a nova Constituição.
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Em uma edição, as autoras entrevistam candidatas para a Assembleia Constituinte. “A formulação de uma nova Constituição é um marco histórico importantíssimo que pode (ou não) garantir e ampliar os espaços democráticos através das leis que irão reger o país”, diz o texto. “Neste número, nós, do Chana com Chana, não poderíamos ficar à margem deste processo.”
Em outro, cobram de parlamentares a inclusão da criminalização da homofobia já na Constituição. “O que os grupos lésbicos fizeram foi tentar conseguir o máximo de apoios, circulavam cartas pedindo a inclusão desse item. Tinha essa função catalisadora junto com os outros grupos gays”, afirma a diretora-geral.
Até hoje, o Brasil não possui uma lei que formalize que o preconceito contra LGBT+ é um delito, apesar da decisão de 2019 do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou que, na prática, ele possa ser punido pela Lei do Racismo.
Com informações da Folha de S. Paulo