Orgulhoso de sua política armamentista, que entregou fuzis para ruralistas em “defesa da propriedade privada”, Jair Bolsonaro (PL) desarmou agentes da Funai que fazem a proteção de indígenas no Vale do Javari, região na floresta amazônica onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips desapareceram.
Segundo reportagem de Tácio Lorran, no site Metrópoles, a Funai retirou armas de fogo em ao menos uma das bases de proteção na Terra Indígena (TI) Vale do Javari.
A denúncia foi feita ao Ministério Público federal (MPF) e teria resultado em um inquérito civil.
A retirada das armas teria sido feita pelo tenente da reserva do Exército Henry Charlles Lima da Silva, que atuou como coordenador da Funai no Vale do Javari. Ele foi nomeado para o cargo pelo secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Tercio Issami Tokano, que atualmente trabalha no gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça.
Além da ação de garimpeiros em busca de ouro, a região do Vale do Javari, que foi demarcada como Terra Indígena em 2001, sofre com o narcotráfico e o tráfico de armas.
É muito comum os invasores ameaçarem indígenas e os próprios agentes da Funai com armas, uma das principais bandeiras da política genocida de Jair Bolsonaro.
Enfraquecimento da Funai favorece violência contra indígenas
Criada em 1967, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem como missão “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. Na prática, principalmente nos três últimos anos do governo de Jair Bolsonaro (PL) o que assistimos é um desmonte acentuado da instituição. O que gera um aumento da violência e ameaças a indígenas, ambientalistas e servidores federais.
É o caso do indigenista Bruno Araújo Pereira, que desapareceu no dia 05 de junho enquanto percorria ao lado do jornalista inglês Dom Phillips, a região do Vale do Javari.
De acordo com funcionários do órgão, o enfraquecimento ocorre há anos e antecede a gestão de Bolsonaro. Porém, nos três últimos anos, os casos de violência contra indígenas cresceu 61% com 182 casos em 2019 e 2020.
Já em 2016, meses após Michel Temer assumir o governo federal, a Funai teve um corte de 37% em seu orçamento. Em março do ano seguinte 51 coordenações técnicas locais na Amazônia foram extintas. Entre elas, a que existia no Vale do Javari.
No último ano, em razão da pandemia, houve um discreto aumento no orçamento e a contratação de funcionários temporários. O que não amenizou a situação de abandono do órgão.
Inicia-se também um cenário de perseguição dentro da Fundação, possivelmente motivado pelo incentivo que esse governo federal dá a garimpeiros, pescadores e madeireiros ilegais.
Bruno Pereira, por exemplo, foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato em 2019. Logo após Bolsonaro assumir o governo.
A saída foi atribuída à pressão de setores ruralistas apoiadores de Bolsonaro. Desde a exoneração, ele tirou uma licença não-remunerada e passou a atuar na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Nos últimos meses, Bruno vinha recebendo ameaças constantes de pescadores ilegais, responsáveis por retirar diariamente toneladas de peixes pirarucu e tracajás dos rios locais.
Para o servidor da Funai, Gustavo Vieira, a exoneração de Bruno foi uma maneira de interromper o trabalho que ele vinha desenvolvendo contra o garimpo ilegal. Os dois trabalharam juntos nos 14 meses que Bruno passou em Brasília no comando da coordenação de indígenas isolados.
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“O Bruno atuava contra essa máfia de criminosos, traficantes, madeireiros e pescadores ilegais lá no Vale do Javari. E um mês antes de ser exonerado ele coordenou uma ação que, junto com a Polícia Federal, explodiu 60 balsas de garimpo e logo na sequência Bolsonaro pede para que não fossem destruídos esse material de ilícitos e a pressão cresce”, disse ao Socialismo Criativo.
“Logo na sequência, Marcelo Xavier entra na presidência da Funai, exonera o Bruno e coloca um missionário evangélico para cuidar da questão dos índios isolados, que tinha como objetivo catequizar os índios isolados”
Gustavo se refere ao teólogo e antropólogo, ex-missionário da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização estadunidense que promove a evangelização de indígenas brasileiros desde os anos 1950. 7″Uma das missões deles era traduzir a bíblia para todas as línguas indígenas. O fato é que a situação ficou tão insustentável que o Bruno pediu a licença não remunerada para fazer o trabalho voluntário na Univaja”, complementa.
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Com a saída do Bruno, o trabalho de repressão ao garimpo ilegal que vinha se fortalecendo se torna fraco e, licenciado da Funai, o indigenista se torna alvo de ameaças e perseguições na região.
“Com Bolsonaro houve um estímulo do Estado contra o próprio Estado e o Bruno se tornou vítima dessa ordem de matar que Bolsonaro acaba dando quando diz que não vai demarcar terra e que os índios tem mais é que plantar soja”, lamenta.
Estrutura precária e ineficaz
De acordo com informações oficiais da Funais, entre 2019 e 2021 foram investidos cerca de R$ 82,5 milhões em ações de fiscalização. Informou ainda que solicitou a realização de um concurso público para preenchimento de 1.043 cargos neste ano.
Porém, a saída de Bruno não foi um fato isolado. Outros três funcionários em posição de comando também deixaram os cargos no governo de Bolsonaro.
César Augusto Martinez, que estava à frente da Diretoria de Proteção Territorial; Oscar Romero de Lima Marcico, então coordenador-geral de Promoção dos Direitos Sociais e João Francisco Goulart dos Santos, coordenador de Gestão Estratégica, pediram para sair.
Em 2021, de acordo com informações do Portal da Transparência, menos de 5% das despesas da Funai foram destinadas a assistência aos povos indígenas.
A maior parte do recurso foi empregada em despesas administrativas. Diante do desmonte, também em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a Funai contratasse 776 servidores temporários para implantação de barreiras contra invasores na Amazônia. O certame aumentou 553 servidores no quadro.
Bolsonaro endossa “permissão para matar”
Com o enfraquecimento da fiscalização, não apenas da Funai, mas de outros órgãos responsáveis por fiscalizar a região, ocorre um aumento da violência. Indígenas, indigenistas, ambientalistas e profissionais que atuam na defesa da Amazônia e dos direitos humanos se tornam mais vulneráveis.
Em outubro de 2019, logo após a exoneração de Bruno Pereira, o servidor Maxciel Pereira dos Santos, que trabalhava na frente de proteção do Vale do Javari, foi assassinado com dois tiros na cabeça em Tabatinga.
Um mês depois, o coordenador da área, Francisco Gouvea, pediu demissão. Ele alegou “precarização dos meios para o atendimento de nossa missão institucional de proteção dos direitos dos povos indígenas” no território.
Somente naquele ano, a base do Vale do Javari sofreu quatro ataques. O último deles foi um ataque a tiros em dezembro, próximo aos rios Itaquaí e Ituí, onde Bruno e Dom Phillips desapareceram.
“A perda é muito grande porque o Bruno era um amigo pessoal, foi meu chefe durante um tempo e foi muito ativo na luta para que a Funai permanecesse inteira, enquanto Bolsonaro tentava fatiar aa fundação e diluir dentro de outros órgãos. E esse foi um dos motivos pelo qual ele caiu com o apoio do Marcelo Xavier”, lamenta o indigenista Gustavo Vieira.
Outros servidores da Funai, que preferem não se identificar, endossam a posição de Gustavo e afirmam que a responsabilidade pelo ocorrido com Bruno e Dom Phillips é tanto de Bolsonaro quanto de Marcelo Xavier.
“O Estado parou de dar força, de oferecer condições para que ações de fiscalização continuassem ocorrendo. Isso fortaleceu as organizações criminosas, que passaram a agir sem medo”, finaliza.
Marcelo Xavier se manifestou poucas vezes sobre o desaparecimento de Bruno e Dom e tentou responsabilizar as próprias vítimas por supostamente terem se colocado em risco.
Xavier é delegado federal e foi indicado para assumir o cargo por integrantes da bancada ruralista no Congresso Nacional.
Por Plinio Teodoro