A necessidade de redução da letalidade policial é tema recorrente no Brasil, seja devido ao aumento exponencial da violência pelas mãos daqueles que deveriam garantir segurança à sociedade ou pela incapacidade do Estado em assegurar a ordem social sem derramamento de sangue. A data de 15 de março é marcada como ‘Dia Internacional Contra a Violência Policial‘ e relembra da necessidade de políticas mais firmes e eficientes no controle do abuso policial no país.
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As críticas contra a atuação das forças policiais no Brasil não são novas, mas ganharam uma nova dimensão nos últimos anos, principalmente diante de um governo que não trata o assustador cenário como prioridade.
Em carta enviada ao Planalto em dezembro de último ano, relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) criticam o governo de Jair Bolsonaro por “fracassar” diante da violência policial, denunciaram o “aumento exponencial” de operações durante a pandemia e alertam que o Brasil está violando tratados internacionais e mesmo a Declaração Universal de Direitos Humanos.
Os números, segundo a entidade, revelam que o crescimento do número de mortes por operações policiais vinha ocorrendo desde 2018. Naquele ano, elas aumentaram 19,6% em comparação a 2017, e 11% das mortes violentas intencionais no país foram o resultado de embates com as autoridades policiais
Em um último balanço do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 6.416 pessoas mortas por agentes do Estado no período, mais de 17 por dia. Em 2013, primeiro ano com dados disponíveis, o total era bem mais baixo: 2.212.
A pesquisadora Samira Bueno, diretora executiva do Fórum, atribui o recorde de letalidade policial a uma escalada da violência na sociedade brasileira. Para ela, o apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL) a ações policiais violentas é um sintoma desse quadro ao mesmo tempo que o alimenta.
“É evidente que isso serve como estímulo [para os policiais matarem]. E me parece que essa politização da polícia e essa excessiva militarização da política estimulam esse aumento”, enfatiza para o jornal Estadão.
Mapa da violência
O estado com o maior número absoluto de mortes continua sendo o Rio de Janeiro — foram 1.245 pessoas mortas pela polícia em 2020. Ao mesmo tempo, o Rio teve a maior redução no número absoluto de vítimas (569) em razão de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringiu ações policiais na pandemia. Contudo, o número voltou a crescer no final do mesmo ano.
Em agosto de 2021, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial também abordou as alegações de que a polícia realizou duas operações violentas nas favelas do Rio de Janeiro, em violação a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de junho de 2020 que proibiu temporariamente as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a duração da pandemia.
“O Comitê observou que a polícia supostamente ignorou a proibição, já que o número de operações policiais aumentou entre outubro de 2020 e a primeira metade de 2021”, destaca.
Só em 2021, o Complexo Salgueiro foi o alvo de 20 operações policiais entre janeiro e outubro, e 26 indivíduos foram mortos nesta área.
Nos outros estados, sem as mortes computadas pela polícia carioca, houve um aumento de 14% comparado a 2019. O Amapá tornou-se o estado com a polícia mais violenta do país em 2020: sozinhas, as forças de segurança do estado tiveram uma taxa de letalidade de 13 mortes a cada 100 mil habitantes, de acordo com o estudo do Fórum.
Bahia: crescimento explosivo de casos e omissão do governo
Outro estado que acumulou números alarmantes foi a Bahia. De acordo com a 15ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.137 pessoas foram mortas pelas polícias na Bahia em 2020. Em 2019, foram 773, um aumento de 46,5% em pleno ano pandêmico.
O índice é o maior da série histórica desde 2008, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a incluir estatísticas de letalidade policial nos anuários.
De acordo com pesquisadores entrevistados pelo jornal Ponte, em 15 anos à frente do Poder Executivo estadual, os governadores do PT nunca priorizaram a pauta da violência policial. O hoje senador Jaques Wagner assumiu em 2007 e permaneceu por dois mandatos, quebrando uma tradição de gestores do extinto PFL (que passou de DEM para União Brasil, ao se fundir com o PSL) ligados ao grupo político do ex-governador e ex-senador Antônio Carlos Peixoto de Magalhães, conhecido como ACM, que faleceu naquele ano.
Em 2015, Wagner passou a cadeira para o sucessor Rui Costa, que também está em seu segundo mandato.
“De 2007 para cá, não existe no governo do Wagner e no do Rui Costa uma mudança política muito significativa, nem na segurança pública”, aponta Felipe Freitas, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e pesquisador do Núcleo Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).
Freitas também pontua que mesmo com avanços, não há ações diretamente efetivas no controle dos crimes. “Apesar de a gente ter assistido nesses anos um fortalecimento das instâncias de direitos humanos, com a possibilidade de um diálogo maior com as organizações, não há a produção de um novo modelo de polícia, não há uma condenação pública do governador às práticas de violência policial e não há um instrumento de governança, ou seja, uma Corregedoria de Polícia que tenha oferecido resposta a esses casos emblemáticos”, analisa.
O governador da Bahia também coleciona declarações que vão na contramão dos direitos humanos. Em março de 2020, com a divulgação dos dados do Monitor da Violência que apontou que a Bahia liderava a taxa de assassinatos no país a cada 100 mil habitantes (3,53), quando foram computados 525 crimes violentos letais intencionais, um aumento de 18,5% em relação ao mesmo período de 2019.
Rui Costa atribuiu o resultado, sem mostrar provas, de que a soltura de presos aumentou a criminalidade. Na época, o Conselho Nacional de Justiça havia emitido recomendação para soltar detentos que estivessem no grupo de risco, como grávidas e pessoas com comorbidades, e não tivessem cometido crimes violentos.
Corpos negros como alvo
Um levantamento feito pela Rede de Observatórios da Segurança (ROS) revelou que a polícia mata uma pessoa negra a cada quatro horas em ao menos 6 estados brasileiros: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram 2.653 mortes com registro racial ocorridas em 2020, das quais 82,7% tiveram como vítima pretos ou pardos.
A pesquisa da ROS coloca a polícia do Rio de Janeiro como a mais letal em números absolutos, como 939 mortes. A Bahia lidera proporcionalmente, com 98% das vítimas negras, seguida de perto por Pernambuco, com 97%.
Os números compõem o cenário do racismo estrutural no Brasil onde pretos e pardos têm 2,6 vezes mais chances de ser assassinados, representam 2/3 de todos os encarcerados e apresentam expectativa de vida três anos menor do que brancos.
Samira aponta que, além do racismo institucional presente nas corporações policiais, é preciso olhar esses índices como mais uma demonstração do racismo estrutural e da desigualdade racial no país, já que a população negra também é vulnerabilizada em uma série de outras questões, como acesso à renda e à moradia digna.
ONU denuncia fracasso em punir policiais
Em carta enviada no último ano, a ONU também alerta para a impunidade dos agentes do Estado. “Estamos alarmados que a maioria dessas alegações não tenha sido devidamente investigada de acordo com os padrões internacionais, e estamos preocupados com a recente demissão do órgão que monitorou as atividades policiais”, destacou.
“Em carta dirigida ao Governo de Vossa Excelência, em 25 de agosto de 2021, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial expressou preocupação com o fracasso do Governo de Vossa Excelência em responsabilizar as forças policiais por atos violentos e racistas contra afro-brasileiros, o que resultou na repetição de atos semelhantes e perpetua o racismo estrutural prevalecente na aplicação da lei brasileira, disse.
Na avaliação dos relatores, o cenário descrito de violência policial indica que o estado está violando suas obrigações internacionais. “Queremos expressar nossa mais profunda preocupação com as alegações acima mencionadas que, se confirmadas, equivaleriam a uma violação do direito à vida, conforme estabelecido no artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no artigo 6 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 1992″, alertam.
Esses atos e omissões também poderiam violar a proibição absoluta da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, estabelecida no artigo 5 da Declaração Universal.
PSB no combate à violência policial
No intuito de mudar essa lógica de atuação do Estado, o PSB atua ativamente. Em uma das frentes, foi solicitado pela sigla a elaboração de um plano de redução da mortalidade pelas forças de segurança no Rio de Janeiro.
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A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 635), que foi aprovada em fevereiro deste ano pelo STF, o PSB pede, por exemplo, a criação de um Observatório Judicial sobre Polícia Cidadã e a instalação de equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes.
“Conforme bem reconheceram a Corte Interamericana de Direitos Humanos e este Supremo Tribunal Federal, a política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro viola, de maneira sistemática, os direitos fundamentais da população negra e pobre das comunidades, ceifando, a cada dia, mais vidas humanas. E, como demonstram as estatísticas mais recentes, inexiste horizonte de melhora sem novas intervenções do STF. Não há mais tempo a se desperdiçar”, pontuou o partido socialista na ação.
A ação requer também a obrigatoriedade de ambulâncias em operações planejadas em que haja a possibilidade de confrontos armados e a determinação que o Estado do Rio de Janeiro instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes.
Em 2020, o Plenário do STF referendou a determinação de Fachin que acatou pedido feito na ação do PSB e suspendeu a realização de incursões policiais em comunidades do estado do Rio de Janeiro enquanto perdurar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19. A decisão determinou que as operações fossem restritas aos casos excepcionais, informadas e acompanhadas pelo Ministério Público.