Informações: Ex-secretária de Economia Criativa do Ministério da Cultura (MinC), antropóloga pesquisadora e professora na Universidade Estadual do Ceará, foi secretária de Cultura do Ceará.
A economia criativa entre virtudes e vicissitudes
O século XXI é o século das cidades, do conhecimento, da criatividade e da inovação. E, por isso, é o século da economia criativa. Todos nós sabemos que a economia criativa é uma economia baseada na abundância e não na escassez de recursos (pois seu insumo principal é a criatividade e o conhecimento humano, que são infinitos); por isso, ela figura como uma estratégia fundamental para os países onde a criatividade é mais importante do que o domínio da ciência e tecnologia, como é o caso do Brasil. Ao mesmo tempo, a natureza colaborativa dessa economia favorece a ação entre pessoas, comunidades, instituições, coletivos, empresas, governos e redes. Enfim, a economia criativa oportuniza a “queima de etapas” nos processos produtivos, na medida em que reconcilia estratégias nacionais com processos internacionais globais. Vale, ainda, observar que a economia criativa é uma economia com grande expressão na área dos serviços, característica cada vez mais forte nas economias urbanas.
Da mesma forma que não é difícil apontar as virtudes da economia criativa, também poderíamos aqui levantar algumas de suas vicissitudes. A determinação do mundo dos serviços depende da qualidade e importância da manufatura no interior do sistema econômico. Sem isso, os serviços tendem a expandir muitas vezes sustentados pelo trabalho precário, aprofundando a separação entre ocupações nobres e pobres. Estruturados em grande parte por micro e pequenas empresas, os setores criativos estudados, em maior ou menor grau, atuam em situações bastante precárias. A baixa conectividade entre os empreendimentos e as instituições que deveriam suportar os mesmos também é uma realidade; seja pela ausência de contato, seja por conexões assistemáticas e descontinuadas, ou ainda, por relações superficiais dessas instituições com os empreendimentos criativos, que impactam de modo insatisfatório nas atividades e nos resultados desses empreendimentos. E mais. Apesar do mito de que “todos” estamos conectados em rede e que, por isso, temos o poder de articular em favor de causas comuns, podendo realizar negócios com mercados locais, regionais ou globais, ainda é baixa, a capacidade de mobilização e articulação entre os membros dos setores criativos.
Por outro lado, a relação com as instituições representativas de cada setor é frágil e há desconfiança entre os empreendedores quanto à sua capacidade de defender causas de interesse comum. Se a cultura colaborativa é reconhecida como importante, ela ainda é incipiente, no sentido de gerar ganhos efetivos no desenvolvimento econômico dos negócios criativos. Somente alguns setores têm incorporado as tecnologias digitais, como instrumentos de criação, produção e distribuição (como a arquitetura, filme & vídeo, jogos digitais e música) e grande parte dos empreendimentos criativos continuam limitados a um determinado território físico, embora haja iniciativas de relacionamento com mercados nacionais e internacionais.
Se as relações dentro dos setores criativos precisam ser fortalecidas, as relações entre os setores precisam ser potencializadas. As relações intersetoriais ocorrem de modo espontâneo, principalmente entre os setores com maior afinidade. No entanto, a ausência de espaços ou de programas que promovam o encontro desses atores reduz a incidência criativa positiva dessas conexões. É grande a necessidade de qualificação da percepção e da compreensão dos agentes (artistas, empreendedores, profissionais e instituições) quanto às dimensões da economia criativa e às dinâmicas de seus sistemas produtivos, redes setoriais e intersetoriais, para que se fortaleça uma cultura de colaboração, participação e desenvolvimento.
Os potenciais de desenvolvimento dos sistemas produtivos e das redes de economia criativa são infinitos, mas precisam ser trabalhados com profissionalismo. Afinal, fazer frente às grandes empresas, em mercados competitivos, demanda das MPE(s) ações articuladas e integradas para a mitigação de suas fragilidades, desde a etapa da criação, produção, distribuição e consumo, potencializando, sobretudo, suas capacidades de difusão e seus canais de comercialização.
A economia criativa brasileira é uma economia de serviços e possui características fortemente urbanas e, especialmente, periféricas nas grandes cidades brasileiras. A diversidade cultural brasileira transformou-se no principal insumo dos pequenos empreendedores dos setores culturais criativos das cidades investigadas. Apoiá-los é necessário e urgente. Graças a esses empreendedores e suas tecnologias sociais, culturais e econômicas, a dimensão simbólica dos negócios criativos perdura, assumindo compromisso com a sustentabilidade dos negócios, mas também das comunidades em seus territórios. São os empreendimentos desses setores criativos que permitirão ao país escapar de um processo de “pasteurização” de suas identidades culturais, tão comum em “tempos globais”, ao mesmo tempo em que valorizam, salvaguardam e difundem as expressões culturais e criativas brasileiras, realizando inclusão produtiva, estimulando novas sociabilidades e solidariedades.
Enfim, os sistemas produtivos e as redes dos setores culturais e criativos, formais ou informais, são muito mais do que atividades econômicas; constituem empreendimentos pedagógicos, que resgatam práticas civilizatórias, por meio de novas compreensões sobre as conexões entre a vida, o trabalho e a cidade. Graças aos pequenos empreendimentos criativos, as minorias, as comunidades, os grupos encontram possibilidades de expressão de suas demandas e conquistas. A pesquisa revela que o pequeno empreendedor não se deixa desestimular diante da hegemonia e da natureza concentradora das indústrias culturais e criativas em suas cidades. Pelo contrário, esses novos trabalhadores vêm, apesar da omissão dos governos, buscando cotidianamente soluções criativas para seus empreendimentos, construindo parcerias, estruturando-se por meio de coletivos, apontando para os governos que o século 21 já chegou e que as políticas públicas para a economia criativa brasileira não poderão mais ser postergadas.
Cláudia Leitão
Qual desenvolvimento? Desafios e impasses da Economia Criativa no Brasil.
Os anos 1980 serão especialmente importantes para a transfiguração dos significados acerca do desenvolvimento, que deixa de ser considerado como um mero fluxo de formação de capital medido pelo Produto Interno Bruto (PIB) e passa a incorporar novos indicadores relativos à ampliação das liberdades e à qualidade de vida. Em dezembro de 1986, a Organização das Nações Unidas (ONU) produz uma primeira Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, incluindo-o na categoria dos Direitos Humanos.
Em 2005, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), aprova a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, ratificando o esforço dos países na construção de um diálogo intercultural capaz de contribuir para uma cultura de paz entre os povos, considerando a diversidade cultural um patrimônio comum da humanidade e destacando a cultura como elemento estratégico das políticas de desenvolvimento. Nesse sentido, o conceito de sustentabilidade é ampliado, deixando de se limitar a uma qualidade do desenvolvimento para se constituir na sua própria essência.
Dessa forma, os setores culturais/criativos (audiovisual, literatura, música, artes visuais, artes cênicas, moda, design, arquitetura, publicidade, artesanato, gastronomia, festas, games, entre outros) na sua dimensão passam a se tornar cada vez mais importantes na constituição do Produto Interno Bruto (PIB) dos países industrializados, crescendo mesmo em situações de crise. Essa tendência lhes dá prestígio junto aos governos, que buscam compreender e fomentar suas dinâmicas econômicas.
Em 2008, as discussões sobre as dinâmicas econômicas dos bens e serviços culturais/criativos chegam à Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), por meio do primeiro Relatório Mundial sobre a Economia Criativa, num esforço de aprofundar o conceito e de compilar informações e dados sobre a economia dos bens simbólicos dentro de uma perspectiva mundial. Em 2010, a UNCTAD amplia sua compreensão da economia criativa, indo além da lógica industrial: A economia criativa é um conceito em evolução baseado em ativos criativos que potencialmente geram crescimento e desenvolvimento econômico; ela pode estimular a geração de renda, a criação de empregos e a exportação de ganhos, aos mesmo tempo em que promove inclusão social, diversidade cultural e desenvolvimento humano; é uma opção de desenvolvimento viável que demanda respostas de políticas inovadoras e multidisciplinares, além de ação interministerial.
A partir de 2013, as pesquisas sobre a economia criativa também passam a ser realizadas pela UNESCO. Apesar do esforço de compilação de dados sobre a economia criativa mundial, realizados pelas organizações internacionais nos últimos anos, muitos países continuam “invisíveis” nesses relatórios. As metodologias quantitativas capturam ou mensuram, em sua grande maioria, a produção de riqueza do que é passível de ser mensurado quantitativamente, ou seja, o impacto econômico das indústrias criativas, ignorando a imensa produção formal e informal dos micro e pequenos empreendedores dos setores culturais e criativos, em todo o planeta. Quando o tratamento é de natureza qualitativa, os resultados limitam-se a descrever os cases de sucesso e, neste caso, a pesquisa torna-se um acumulado de experiências criativas que carecem de maior sistematização e interpretação.
Se as pesquisas relativas à economia criativa ainda são insatisfatórias, impossível negar sua importância cada vez mais estratégica no planeta. E, no mundo globalizado, em que dependências científicas e tecnológicas determinam padrões de consumo e de comportamento das populações, o Brasil já poderia ser uma liderança, especialmente junto aos países do Cone Sul, na construção de um novo desenvolvimento. Afinal, a exportação de commodities vem perdendo gradativamente sua importância frente à exportação de bens e serviços de alto valor agregado, cujos insumos são a cultura, a criatividade, a educação e a ciência & tecnologia.
Em tempos eleitorais, esse debate acerca da economia criativa necessita atravessar os programas político-partidários. Para o bem do Brasil.
Cláudia Leitão
Professora e pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará, diretora do Observatório de Fortaleza e consultora em Economia Criativa