Com currículo falso, uma mulher branca se tornou professora universitária e transitou por instituições públicas e privadas sem levantar nenhuma desconfiança sobre sua capacidade profissional – algo que não teria acontecido se a mulher se tratasse de uma pessoa negra. O caso ganhou destaque na imprensa baiana, que o classificou como um escândalo policial por tratar-se de mais uma das nuances do privilégio branco.
Para o Portal Alma Preta, a professora e pesquisadora em relações raciais, Lia Vainer Schucman, aponta como a associação entre superioridade moral, intelectual e o “ser branco” podem ter beneficiado a atuação de Cátia Raulino, que deve ser indiciada por ao menos cinco crimes.
A Polícia Civil encaminhou na última semana o inquérito de Cátia Regina Raulino para o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), que poderá indiciá-la por ao menos cinco crimes. A mulher investigada poderá responder por estelionato, uso de documento falso, exercício ilegal da profissão, falsidade ideológica e plágio.
É o que explica a professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lia Vainer Schucman, pesquisadora das relações raciais no Brasil.
Para ela, há uma associação entre a superioridade moral, intelectual e o “ser branco”, o que beneficiou Cátia.
“No caso do Brasil, ser branco é uma posição de poder, em que no próprio corpo da pessoa branca recai significados positivos de legitimidade, confiabilidade e competência. Assim, com certeza Cátia Raulino – a mulher branca – se beneficiou individualmente dos significados positivos associados a branquitude e do racismo estrutural que colocam os brancos em posições de vantagens”, afirma.
O currículo de Cátia
Em um extenso currículo na plataforma Lattes, Cátia se dizia doutora pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com a tese “A aplicação prática do mapeamento de processos”, defendida em 2018 na Faculdade de Administração, porém não existia o nome do orientador.
O título de mestre teria sido obtido na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a dissertação “A utilização de benefícios fiscais como garantia de sobrevivência empresarial”, em 2010, sob orientação do professor Márcio Roberto Harger, mas no currículo Lattes do suposto orientador não há nenhuma informação sobre Cátia Raulino ter sido orientada por ele.
Em anonimato, ex-alunos da suposta professora também disseram que ela chegou a dar uma aula de 30 minutos sobre imposto de renda na disciplina de Direito Tributário.
Recentemente, houve desmoralização pública do ex-ministro da educação Carlos Alberto Decotelli por fraudes em seu currículo Lattes. Em 2019, a cientista Joana D’Arc Félix de Souza, também foi desmoralizada por um suposto pós-doutorado em Harvard. Ambos se tratavam de pessoas negras.
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Para Lia, a desmoralização pode ser explicada em razão de assim como existem estereótipos positivos para os brancos, existirem estereótipos negativos para os negros.
“A mesma vantagem que a Cátia Raulino teve, ela se configurou como uma desvantagem para o Decotelli e Joana D’Arc, que ao invés de ter a legitimidade garantida, há sempre uma desconfiança. Mesmo que a pessoa tenha errado, o erro é pago de forma mais brutal, no sentido de que você não pode errar, porque você já está no olho do furacão, enquanto brancos erram e sempre são perdoados”, pondera a pesquisadora de relações raciais.
Repercussão nas redes sociais
Nas redes sociais, Cátia se apresentava como uma renomada jurista, com passagem por diversas faculdades particulares de Salvador e contava com mais de 180 mil seguidores no Instagram. Com um currículo falso, Cátia lecionou em diversas universidades particulares onde ministrou cursos de pós graduação e até assumiu a função de coordenadora. A contratação dela para coordenação do curso de Direito na UniRuy é alvo de uma denúncia de racismo e preterimento de um candidato negro. O advogado Marinho Soares afirmou em 2016 ter participado de um processo seletivo com a mulher e que não foi selecionado “por ser preto”.
Cátia também conseguiu espaço no setor público e durante um ano exerceu carago de confiança no Tribunal de Justiça da Bahia, como supervisora, entre fevereiro de 2013 e janeiro de 2014, com remuneração de quase R$ 5 mil.
A trajetória da mulher por espaços públicos e privados, segundo Lia, é explicada por resultados do racismo estrutural na sociedade, onde cada sujeito branco recebe privilégios apenas por fazer parte desse grupo racial.
“Essas vantagens abrem portas e livre circulação. No entanto a vantagem é algo que a pessoa recebe de outros, são benefícios distribuídos, e neste sentido os benefícios são distribuídos entre brancos e sistema de justiça brasileiro é o locus destes pactos narcísicos entre brancos”, destaca.
“Esse pacto Cida Bento conceituou como alianças que se formam entre brancos e se caracterizam primeiro pela escolha de brancos para ocupar os cargos de prestígios e pela interdição de negros em espaço de poder pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica e política do negro, no universo social”, complementa a professora, autora de livros como “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo – Branquitude, Hierarquia e Poder na cidade de São Paulo” e “Famílias Inter-raciais, estudo psicossocial das hierarquias raciais em dinâmicas familiares”.
Currículo falso
A imagem e o currículo de Cátia Raulino começaram a ruir quando ela foi denunciada em junho no Departamento de Polícia Metropolitana (Depom) por exercício ilegal de advocacia e após duas ex-alunas a denunciarem no Ministério Público por plágio após terem seus trabalhos de conclusão de curso usados por Cátia em artigos publicados em livros como se fossem de sua autoria.
Desde então, a investigação descobriu que nem mesmo a graduação em Direito, supostamente feita na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) é verdadeira.
Com informações do Alma Preta