‘A aprovação da proposta sobre decisões monocráticas do Supremo acirrou o conflito entre governo e ministros da Corte’, escreve a colunista Tereza Cruvinel
POR 247 – A aprovação da PEC 08/21 pelo Senado e a reação de alguns ministros do STF não foram um evento trivial, em que estiveram, de um lado, senadores bolsonaristas cortejados por Pacheco com objetivos políticos, e de outro, ministros vaidosos com alto sentimento de intocabilidade. No meio ficou o Governo Lula, que não quis ou não conseguiu realizar uma mediação política. Pelo contrário, acirrou o conflito com o voto de Jacques Wagner, embora ele alegue que foi pessoal.
A PEC que proibiu as decisões monocráticas contra atos e medidas dos chefes do Legislativo e do Executivo, e as outras tantas propostas que tramitam nas duas Casas do Congresso, tendo o Supremo como alvo, são reflexos do desarranjo no funcionamento do pacto democrático traduzido pela Constituição de 1988. Este desarranjo, em que as coisas foram sendo tiradas de seu lugar, chegou ao paroxismo no governo de Bolsonaro, que fez do Supremo seu inimigo porque a corte bloqueou seguidamente suas transgressões constitucionais e seus intentos golpistas. Muitas vezes, através de decisões monocráticas, porque a situação pedia resposta urgente, o STF derrubou medidas que ameaçavam os direitos individuais e coletivos. Vidas estavam em risco. Assim fizeram para garantir o isolamento social, coibir os tratamentos ineficazes com cloroquina, garantir atendimento aos indígenas e a compra de vacinas. Depois vieram as questões eleitorais, as alegações contra as urnas eletrônicas. STF e TSE também foram firmes e isso nunca foi engolido pelos bolsonaristas, como estes que armam vingança no Congresso. Bolsonaro entrou na cristaleira e quebrou muita louça. Agora está fora e triplamente inelegível mas o desarranjo, que não começou com ele, persiste e aflora nesta crise da PEC. Este conflito não se resolverá com as trocas de farpas e com o congelamento da emenda na Câmara. E nem com um jantar entre Lula e alguns ministros da corte. Ou com a nomeação de um PGR e um ministro do STF do agrado de alguns deles. O ex-deputado José Genoíno, que foi Constituinte, que foi condenado pelo STF e conhece como poucos o funcionamento do Congresso, a Constituição e a relação entre os poderes, aponta seguidos episódios em que o pacto de 1988 foi sofrendo pequenos rasgões. Quase nos levou à ruptura com Bolsonaro e o 8 de janeiro. A democracia sobreviveu mas o tecido essencial continua esgarçado. Já no governo do primeiro presidente eleito, Fernando Collor, recorda Genoino, o STF cometeu um pecado de omissão ao não condenar aquele plano de confisco, que violou garantias e direitos individuais. A inconstitucionalidade foi arguida pelo PT mas o STF cozinhou o assunto, talvez acreditando que o plano funcionasse contra a inflação. Mas veio o impeachment de Collor e o STF cumpriu o papel que cabia no rito. FHC aprovou a reeleição para si mesmo mas foi dentro das regras democráticas, através de emenda constitucional. O pacto funcionou bem com ele e no primeiro governo Lula. Até que veio o chamado mensalão, que Genoíno aponta como início do esgarçamento. Aquilo era um grande caixa dois, prática de todos os partidos, mas a oposição, no Congresso, fez a guerra contra Lula e o PT. Até aí, luta política. Lula, entretanto, conseguiu se reeleger.
No julgamento da ação penal 470, muitas regras foram quebradas. Pessoas sem foro foram julgadas e condenadas pelo STF. Provas foram ignoradas e ministros condenaram acusados por “convicção”. A alienígena teoria do domínio do fato amparou o punitivismo. A mídia fazia sua parte, forçando ministros a decidir “com a faca no pescoço”.
– Depois veio o impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma, que o Supremo endossou. Veio a Lava Jato, e por muito tempo a quebra do devido processo legal foi tolerada. As prisões preventivas alongadas, as delações premiadas arrancadas com tortura psicológica. Lula foi condenado e preso num processo irregular, e só muito depois o STF, por decisão monocrática, declarou que a Vara de Curitiba era incompetente para julgá-lo – recorda Genoíno.