
Que o presidente Jair Bolsonaro (PL) sempre teve descaso com a população indígena que habita o Brasil, isso todo mundo sabe. No caso mais recente de negligência do governo federal com os povos originários, mais de 20 famílias de comunidades indígenas nas cidades de Angical e Serra do Ramalho, no oeste da Bahia, ficaram isoladas, sem alimento e água potável, após as fortes chuvas que atingiram o estado.
De acordo com o Corpo de Bombeiros de Barreiras, também no oeste da Bahia, na cidade de Angical 20 famílias da tribo Atikum foram atingidas no povoado Benfica. Já em Serra do Ramalho, foram sete famílias afetadas nas aldeias Pacaru e Funior. Com os temporais, as comunidades perderam imóveis, alimentos entre outros bens materiais. Não foi informado se há feridos ou desaparecidos nas comunidades.
Agentes do Corpo de Bombeiros conseguiram ter acesso ao local na segunda-feira (3) e fizeram a entrega de cestas básicas e água potável para os indígenas de Angical. As doações para a comunidade de Serra do Ramalho estão previstas para esta terça-feira (4).
Ainda conforme o Corpo de Bombeiros, a Fundação Nacional do Índio (Funai) solicitou quase 2 mil litros de água mineral e cestas básicas à Defesa Civil da Bahia. As doações são da campanha SOS Chuvas, que faz a arrecadação de alimentos, roupas, itens de higiene entre outros para as famílias afetadas pelas chuvas nas regiões sul, extremo-sul e oeste da Bahia.
Dados dos impactos dos temporais na Bahia
De acordo com dados divulgados na segunda-feira (3), pela Defesa Civil da Bahia, subiu para 26 o número de mortos em decorrência das enchentes que ocorrem em diversas regiões do estado. Ao todo, 715.634 pessoas já foram atingidas pelos temporais, incluindo 30.915 desabrigados, 62.731 desalojados e 518 feridos.
Os municípios onde ocorreram as mortes são: Amargosa (2), Itaberaba (2), Itamaraju (4), Jucuruçu (3), Macarani (1), Prado (2), Ruy Barbosa (1), Itapetinga (1), Ilhéus (3), Aurelino Leal (1), Itabuna (2), São Félix do Coribe (2), Ubaitaba (1) e Belo Campo (1).
Os números da Defesa Civil correspondem às ocorrências registradas em 166 municípios afetados. Desse total, 154 estão com decreto de situação de emergência.
Na manhã da terça-feira (4), o governador do estado Rui Costa (PT) esteve no município de Vereda, no extremo sul da Bahia, para a entrega de cerca de 400 eletrodomésticos e colchões para a população atingida pelas enchentes. Ao todo, foram entregues 96 geladeiras, 96 fogões, 96 botijões e 96 colchões.
A ação dá continuidade às entregas iniciadas no dia 29 de dezembro na cidade de Itamaraju, e faz parte de uma das iniciativas de auxílio do governo do estado por causa dos temporais. Além dos eletrodomésticos, as famílias atingidas também terão acesso a um auxílio financeiro que ainda terá valor estipulado e repassado.
Bolsonaro impõe retrocesso aos indígenas
Durante a campanha presidencial, Bolsonaro disse que não demarcaria nenhuma terra indígena se fosse eleito — e tem cumprido a promessa. Disse ainda que buscaria reduzir áreas já demarcadas, o que ainda não fez. As terras indígenas demarcadas pertencem à União e são destinadas à “posse permanente” e ao “usufruto exclusivo” dos indígenas, não podendo ser vendidas.
Bolsonaro já defendeu entregar os títulos das terras para as comunidades para que elas possam negociá-las — a medida, porém, exigiria uma mudança constitucional.
Hoje, segundo a Funai, já foram concluídos 440 processos de demarcação de terras indígenas no país. Essas áreas correspondem a 12,6% do território nacional e se concentram na Amazônia. Segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 817,9 mil integrantes no Brasil — 0,4% da população total do país. É por isso que Bolsonaro costuma dizer que “há muita terra para pouco índio no Brasil”.
Porém, embora várias etnias de fato contem com amplas áreas demarcadas, muitas tiveram pequenos territórios demarcados ou ainda aguardam a regularização de suas terras.
É o caso, por exemplo, de grande parte das etnias que habitam as regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, onde muitas terras reivindicadas pelas comunidades são cobiçadas ou ocupadas por não-indígenas, o que travou muitos processos.
Segundo a Funai, há 248 processos de demarcação de terras indígenas em curso. Essas áreas equivalem a um décimo das terras já demarcadas, ou 1,2% do território nacional.
O caso dos guarani kaiowá, de Mato Grosso do Sul, é emblemático. Embora sejam o segundo povo indígena mais numeroso do Brasil, com cerca de 43 mil integrantes segundo o IBGE, muitos membros da etnia vivem em reservas superpovoadas, onde sofrem com problemas comuns a bairros de periferia de grandes cidades.
Outros vivem acampados em áreas hoje ocupadas por fazendas e que as comunidades reivindicam como territórios ancestrais. Nos últimos anos, conforme o ritmo de demarcações diminuiu, muitas comunidades recorreram à Justiça para tentar destravar os processos.
Bolsonaro também defende que as terras indígenas sejam abertas para atividades econômicas de grande escala, como a mineração e o agronegócio.
Em várias ocasiões, ele afirmou que os indígenas não podem “continuar sendo pobres em cima de terras ricas”, referindo-se principalmente aos depósitos minerais presentes em territórios indígenas na Amazônia.
O presidente tem se aproximado de indígenas favoráveis à mineração e disse que enviaria ao Congresso um projeto de lei para regulamentar a atividade. Segundo ele, a iniciativa melhorará os padrões de vida das comunidades.
A Constituição prevê a possibilidade de mineração em terras indígenas, mas desde que a atividade seja regulamentada por lei. Como nenhuma lei sobre o tema foi aprovada, a prática é hoje ilegal. Apesar disso, em algumas terras indígenas, garimpeiros atuam há décadas, geralmente com o aval de algumas lideranças locais.
Indígenas críticos à regularização da mineração temem os impactos ambientais e sociais da atividade em suas terras. Em garimpos de ouro, por exemplo, é comum o uso de mercúrio, substância que contamina rios e peixes e pode provocar danos neurológicos em humanos.
Há ainda o receio de que o ingresso de forasteiros para trabalhar nas minas traga doenças e estimule a prostituição de mulheres indígenas.
Agronegócio em terras indígenas
Bolsonaro diz que também enviará ao Congresso uma proposta para autorizar a agropecuária em grande escala em terras indígenas. Segundo o presidente, a expansão da pecuária nesses territórios poderia ajudar a baixar o preço da carne bovina no país.
Hoje a maioria das comunidades indígenas pratica uma agricultura tradicional, voltada ao consumo dos próprios moradores ou a mercados locais.
Mas há exceções. Nos últimos anos, algumas comunidades passaram a arrendar suas terras para produtores de grãos. As iniciativas são contestadas judicialmente, pois a Constituição estabelece o “usufruto exclusivo” dos indígenas sobre as riquezas do solo, rios e lagos de seus territórios.
Em Mato Grosso, indígenas da etnia paresi passaram eles próprios a cultivar soja, milho e feijão com máquinas modernas em 18 mil hectares (o equivalente a 18 mil campos de futebol) de seu território.
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O governo diz que, com a regulamentação, as comunidades poderão ter acesso a mecanismos hoje disponíveis para outros agricultores brasileiros, como financiamentos e assistência técnica.
Já os críticos apontam para os riscos associados à produção agropecuária em larga escala, como a contaminação por agrotóxicos e a perda da biodiversidade.
Há ainda o temor de que as atividades econômicas vultosas impactem os modos de vida das comunidades, provocando o abandono de tradições e estimulando o individualismo.
Bolsonaro usa mesmo discurso da ditadura militar
Bolsonaro costuma dizer que os indígenas devem ser “integrados” à sociedade nacional — mesmo discurso adotado pelo governo durante a ditadura militar (1964-1985).
Ao discursar na Assembleia Geral da ONU, em setembro, o presidente afirmou que “algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas”.
Em outras ocasiões, disse que os indígenas são “pobres coitados” e que “nosso projeto para o índio é fazê-lo igual a nós”.
A Constituição de 1988, no entanto, reconheceu a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições dos indígenas, rompendo com a perspectiva integracionista adotada pelo Estado brasileiro até então.
Líderes indígenas dizem que, ao tratar da cultura indígena, Bolsonaro expõe visões racistas e etnocêntricas (crença de que uma cultura é superior às demais).
O discurso que associa os indígenas à pobreza também é contestado, especialmente em comunidades que vivem na floresta e contam com recursos naturais abundantes, como caça, pesca e frutos.
Muitos líderes criticam ainda o discurso de que seriam manipulados por ONGs. Eles dizem que as entidades são suas parceiras e que, muitas vezes, preenchem a ausência do Estado em suas regiões.