Por Domingos Leonelli – O excelente ensaio de Juca Ferreira, “Economia da Cultura, Grandeza e Complexidade”, publicado no Le Monde Diplomatique em 20 de abril, bem como o artigo-comentário publicado na Revista Teoria e Debate, “Cultura É Desenvolvimento”, do mestre Albino Rubin, merecem ser lidos e anotados. O ideal seria que além de intelectuais, professores e estudiosos, esses artigos fossem lidos por governadores, prefeitos e ministros.
Pelo menos um vereador, Silvio Humberto, os leu e chamou minha atenção para o artigo de Rubin, pois o de Juca eu já havia lido.
Longe de mim pretender complementar ou retificar os textos que, do ponto de vista da cultura, estão perfeitos.
Por mais que os números da economia da cultura sejam significativos (3% do PIB, 7 milhões de postos de trabalho), a cultura em si é muito maior. Ela dá sentido à vida e a um verdadeiro projeto nacional de desenvolvimento. E quando Juca Ferreira recusa uma análise economicista da cultura, Rubin reforça essa recusa afirmando que “os impactos da economia da cultura ultrapassam, em muito, a economia”.
Uma peça de teatro experimental, uma pesquisa musical ou um ensaio literário mais complexo não se transformarão nunca em mercadorias culturais, não serão parte da economia criativa, mas podem ser absolutamente importantes e valiosos culturalmente para o desenvolvimento da cultura e do próprio país. Assemelha-se a uma pesquisa científica complexa, considerada por muitos como o “sexo das borboletas”, que não tem nenhuma aplicação imediata e, portanto, nenhum valor financeiro, mas que pode ser fundamental, anos depois, para a descoberta de uma vacina, por exemplo.
E como assinala Celso Furtado, “o objetivo último de uma política cultural deve ser fortalecer todas as formas criativas da sociedade. A cultura permite pensar o desenvolvimento, dando nitidez ao sonho”.
Mas as questões culturais, obviamente, não estão acima da sociedade. Ao contrário, são fruto de suas contradições econômicas, sociais e… culturais. Entendo, a partir do ensaio de Juca Ferreira e do comentário de Albino Rubin, que a Economia da Cultura, para ser estabelecida como política pública, tem que ser tratada como algo além da própria economia. Concordo com isso.
Mas além da dimensão simbólica, a venda de ingresso para um cinema também integra a Economia da Cultura. E não tem dimensão simbólica alguma.
E aqui entra a conexão da economia da cultura com a economia criativa. O filme é uma obra criativa de atores, diretores, iluminadores, fotógrafos, roteiristas, pesquisadores, maquiadores, figurinistas, pesquisadores. Mas é também uma mercadoria que eu compro o direito de assistir num cinema (que saudade) ou numa assinatura da Netflix.
E não é porque ele é uma “simples mercadoria” que ele perde sua dimensão simbólica que pode me levar ao êxtase nas nuvens da imaginação ou às lágrimas. Aliás, mercadorias não são pecaminosas em si. O pão e o vinho são mercadorias.
E embora a cultura, por um lado, seja muito maior que a economia, ela é uma parte da economia criativa. Possivelmente a mais importante, mas uma parte.
A ciência, a tecnologia, a comunicação, a criação de softwares, o desenvolvimento de sistemas tecnológicos são também partes da economia criativa. E cada vez mais a tecnologia, principalmente das comunicações, cruza-se com a cultura na produção de filmes, músicas, artes plásticas, dança e outros produtos culturais destinados a iPads, telefones ou computadores.
Entre cultura e tecnologia, há um elemento comum: a criatividade.
A criatividade individual e coletiva passa a ter, no novo paradigma socioeconômico estabelecido pela revolução tecnológica, na sociedade do conhecimento, um papel decisivo. A inovação e a criatividade passam, em muitos casos, a valer mais do que máquinas, terra e matéria-prima na formação de valor e na acumulação de capital. E as maiores empresas do mundo já não são aquelas que possuem fábricas, as indústrias de transformação. Essas continuarão a existir como a agricultura permaneceu depois da revolução industrial, como nos lembra Ladislau Dowbor.
Mas a vanguarda da economia e as empresas mais importantes do mundo são as produtoras de informação, produtos culturais como a Facebook, Microsoft, Amazon. E quando fabricam produtos físicos, esses têm mais de 80% de seu valor determinado pela inteligência embarcada, como os smartphones e os computadores da Apple ou Samsung. Um tênis da Nike vale mais pelo seu design e marca do que pelo couro e borracha gastos em sua fabricação.
A economia se desmaterializa, inclusive no grande problema do mundo que é o capital financeiro: o dinheiro físico tende a desaparecer, substituído pela tecnologia da informação, como exemplo o PIX. Monopólios e oligopólios “tecno financeiros” ameaçam a soberania nacional.
A economia criativa, portanto, não é apenas um conjunto de atividades originadas no talento humano e ligadas à cultura e à tecnologia. É a face mais visível de uma transformação profunda no modo de produção.
É necessário observá-la e estudá-la, perceber suas tendências e matizes para impedir que ela continue a produzir mais desigualdades em escalas mundial e nacionais. Produzir ideias e políticas públicas capazes de fazer com que o gênio, ao invés de voltar para a garrafa, sirva aos seus verdadeiros senhores: o povo trabalhador.