
Em uma cruzada contra o pensamento crítico, a Fundação Cultural Palmares resolveu eliminar mais de 5.300 obras consideradas “panfletárias” e voltadas para a “dominação marxista” da entidade. Os detalhes dessa caçada comunista estão no relatório Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista, que vetou obras de Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lenin, Max Weber, Eric Hobsbawn, H. G. Wells, Celso Furtado, Carlos Marighella, entre outros. Os títulos recusados correspondem a metade do acervo, com 9.565 publicações, 46% sobre a temática negra e 54% sobre temas diversos.
Contrarrevolução bolsonarista, analisa Jones Manoel
O professor e historiador marxista Jones Manoel, colunista do Socialismo Criativo, comenta o contexto dessa medida no cenário do bolsonarismo que está no comando do país. Ele explica que o fenômeno da ultra direita é caracterizado, entre outras coisas, por ser uma contrarrevolução no plano cultural e simbólico. Esses grupos defendem uma agenda conservadora e combatem tudo que é progressista, democrático e de esquerda.
“Inclusive, nesse processo, reduz todo e qualquer valor democrático como se fosse um elemento de implementação do comunismo, do socialismo, o que é uma característica do pensamento reacionário; que tende a igualar qualquer valor progressista e democrático a um elemento do projeto revolucionário de subversão da ordem.”
Jones Manoel
Desmonte das políticas públicas na Palmares
Jones aponta que a recente medida da Fundação Palmares é mais uma em um rol de várias ações que têm o objetivo de desmontar essa agência de política pública e inviabilizá-la. Na prática, avalia o professor, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) não acabou com a Fundação Palmares apenas sob o ponto de vista jurídico. No entanto, concretamente, a entidade não existe mais enquanto formuladora de políticas públicas, aparelho cultural e político para pensar políticas de igualdade racial e de combate ao racismo no Brasil.
“Esse problema também explicita uma questão muito importante. Essas fundações precisam ter elementos de governança popular para ficarem menos sujeitas ao governo do momento. A Fundação Palmares precisa ter, por exemplo, um conselho administrativo eleito pelos movimentos populares, pelos setores em luta e que tenha independência frente ao governo do momento para fazer com que as mudanças governamentais do ‘vai-e-vem’ da política partidária eleitoral não causem uma interrupção total de políticas públicas.”
Jones Manoel
Jones classifica o expurgo de obras do acervo da Fundação Palmares como mais um passo da “contrarrevolução reacionária de traços fascistóides”. Para ele, a medida tenta regredir qualquer debate de políticas públicas de enfrentamento ao racismo. Além de explicitar os limites e os problemas de uma visão de política pública que depende do governo do momento e não está alicerçada na concepção de poder popular, de autogestão direta dos movimentos populares, dos partidos revolucionários de esquerda e dos sujeitos que constroem a luta.
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O professor analisa que não se pode depender do governo do momento e de uma possível volta no futuro de um governo progressista de centro-esquerda. “Tem que se colocar em pauta uma mudança na concepção essas agências de política pública para uma verdadeira governança popular”, finaliza.
Contra a “dominação marxista” na Palmares
Na seção do relatório “Palavra do Presidente”, Sérgio Camargo, que dirige a entidade, justifica a eliminação de mais de cinco mil livros do acervo: “pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções marxistas e das técnicas de guerrilha”.
“Todas as pessoas de bem ficarão chocadas ao descobrir que uma Instituição mantida com o dinheiro dos impostos, sob o pretexto de defender o negro, abriga, protege e louva um conjunto de obras pautadas pela revolução sexual, pela sexualização de crianças, pela bandidolatria e por um amplo material de estudo das revoluções marxistas e das técnicas de guerrilha”.
Sérgio Camargo
Camargo também foi às redes sociais celebrar o relatório contra a “dominação comunista” “Todas as obras que corrompem a missão cultural da Palmares serão excluídas nesta sexta-feira, 11. Um livramento!”, anunciou Camargo no Twitter. Na rede social, Camargo disse que ainda vai “postar a lista dos pretos racistas da esquerda. Há muitos! Um deles chegou ao ponto de chorar pelo então presidiário Lula, na porta da cadeia!”.
Relatório da Palmares é negacionista e ignorante
Pesquisadores do campo racial no país e de temas afro-brasileiros costumam ter o acervo da Fundação Cultural Palmares um importante referencial para estudos.
Paulo César Ramos, sociólogo, pesquisador do Afro-Cebrap e coordenador do projeto Memória e Identidade do Ativismo Afro-brasileiro diz que “supor que a memória negra é esta coisa insulada é uma forma de ignorância, uma forma de negacionismo”.
“Se você não tem um livro sobre a Revolução Francesa ali, você não vai conseguir estabelecer relações interpretativas com a Revolução do Haiti. Não vai conseguir entender os movimentos africanos sem se servir minimamente dos estudos marxistas. Não vai conseguir analisar o feminismo negro se você não estabelecer um diálogo mínimo com Simone de Beauvoir”.
Paulo César Ramos
Questão negra não é temática
Fernando Baldraia, historiador e editor de diversidade da Companhia das Letras, afirmou que o uso recorrente da expressão “temática negra” no relatório” já denuncia um “erro crasso”: pensar o negro como um “outro” que influencia apenas externamente a formação da sociedade brasileira, mas que não a constitui.
Para Baldraia, qualquer obra (seja ela influenciada pelo marxismo, pelo feminismo ou por qualquer outra teoria) que pense a formação das sociedades humanas pode “promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes no contexto social do país”, como determina o regimento da Palmares.
“A ‘questão negra’ trata de um problema eminentemente social, da constituição da sociedade brasileira (e mundial) e não de uma “temática” que possa ser circunscrita por qualquer termo, como ‘raça’, ‘racial’, ‘negro’ ou ‘afrodescendente’. Enquanto o negro for ‘tema/temática’, seremos postos em caixinhas (ou acervos)”.
Fernando Baldraia
Apagar a história do movimento negro brasileiro
Marisa Midori, professora do Departamento de Jornalismo e Editoração da Universidade de São Paulo (USP), afirma que expurgo da Palmares tem caráter autoritário e visa apagar a história de parte do movimento negro brasileiro, que manteve um diálogo profícuo com o marxismo.
“A questão do negro do Brasil vai da história, da sociologia e da literatura, ao folclore e ao hip hop. A biblioteca da Fundação Palmares deve abranger tudo que vai de Clóvis Moura (sociólogo marxista) ao slam. Dizer que tais e tais livros deseducam ou que estão desatualizados é uma falácia e uma maneira autoritária de agir. Seria possível construir uma biblioteca que poderia, sim, abrigar obras que agradam à atual administração, ao mesmo tempo em que preserva sua própria história”.
Marisa Midori
Guerra contra a equidade de gêneros
Uma das obras banidas da Palmares é o livro “Menino brinca de boneca?”, do pedagogo Marcos Ribeiro, com primeira edição publicada em 1990. A publicação é voltada para crianças entre 7 e 10 anos e propõe uma educação igualitária para meninos e meninas, livre de estereótipos e discriminações.
Em sua batalha pelo avanço do conservadorismo, Camargo usou o livro de Ribeiro como exemplo de “apologia da ideologia de gênero”, conceito inventado e difundido por grupos conservadores.
O autor reagiu e explicou que o livro lançado foi há mais de 30 anos foi adotado pelo governo federal e pelas secretarias de Educação de vários estados. “A obra apenas propõe uma relação de igualdade entre homens e mulheres, sem que haja submissão de um ao outro”, destaca Ribeiro.
O título questiona os estereótipos com que nos deparamos desde a infância, como “menina não joga futebol”. No caso dos meninos, brincar de boneca está relacionado ao cuidado, que pode prepará-los inclusive para se tornarem melhores pais. Ribeiro lamenta a retirada do livro junto com as demais obras do acervo da Palmares e discorda de uma das premissas da seleção, de que as obras não estariam relacionadas à finalidade da instituição, de promover e preservar a cultura negra e afro-brasileira no país.
“Um dos pontos fundamentais da educação é a interdisciplinaridade, a troca entre diferentes culturas e saberes. É saudável que os livros estimulem os debates junto às famílias, que podem inclusive discordar do seu conteúdo. Excluir publicações é uma forma de impedir a circulação do conhecimento e de cercear o debate.”
Marcos Ribeiro
Ex-presidentes da Palmares comentam expurgo
Zulu Araújo presidiu a Fundação Palmares entre 2002 e 2010. Ele classifica a ação da entidade como um atentado contra a cultura brasiliera.
“Esse relatório é estúpido! Um verdadeiro atentado contra a cultura brasileira. Ele atenta contra a liberdade de expressão, contra ao acesso livre e democrático às obras nacionais e internacionais, e contra o Plano Nacional do Livro, da Leitura e da Escrita aprovado pelo Congresso Nacional. É uma tentativa de censura ao conhecimento literário no Brasil. E censura é crime!”
Zulu Araújo
Presidente da Palmares entre 2013 e 2015, o ator e diretor Hilton Cobra diz se lembrar da ida de estudantes e pesquisadores à biblioteca da instituição, e lamenta a perda de parte da coleção.
“Não quero ser pautado por esse governo, até porque, se o Sérgio sai, o Bolsonaro arruma outro pior. Mas agora não são só besteiras na internet. Metade do acervo vai embora, isso não dá para recuperar. E se eles não conseguem entender a importância destes livros para a Palmares, saibam que foram outros pretos que constituíram esse acervo. É preciso respeitar”.
Hilton Cobra
“Esdrúxulos e destoantes””
“A avaliação temática consistiu em identificar o conteúdo de cada livro e classificá-lo de acordo com suas ideias e propósitos centrais. Esse método permitiu constatar, sem nenhuma margem de erro, os objetivos revolucionários e marxistas da coleção”, explica o relatório da Palmares.
O documento admite que os censores não leram a íntegra de todos os livros vetados. A triagem foi feita a partir da leitura de títulos, sumários, introduções e resumos de capa. “Nos casos em que esse procedimento não foi suficiente para definir com precisão o teor do livro, alguns capítulos foram lidos. Em outros casos, os livros foram lidos integralmente”. O relatório não informa quais elementos foram adotados para avaliar cada obra.
Embora não fique claro como foi feita a triagem, foram criadas categorias para classificar as obras expurgadas: “iconografia delinquencial”, “iconografia sexual”, “intromissão partidária”, “sexualização de crianças”, “pornografia juvenil”, “técnicas de vitimização”, “livros esdrúxulos e destoantes”, “livros eróticos, pornográficos e ‘pedagógicos'”, “livros de/e sobre Karl Marx”, “livros de/e sobre Lênin e Stalin” e “material obsoleto”.
Censura para “preservar valores”
Com 74 páginas, o relatório foi elaborado pela equipe de Marco Frenette, ex-assessor de Roberto Alvim, demitido do cargo de secretário da Cultura por apologia ao nazismo, que em março foi nomeado coordenador-chefe do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra.
Frenette afirmou ao jornal O Globo que o norte da análise foi a lei que criou a Fundação e o seu regimento interno. Criada em 1988, a Palmares tem a função promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira.
“Tudo o que for alheio à temática negra será retirado, sem filtro ideológico. Nosso norte é a lei federal que gerou a Fundação e o Regimento interno que deriva dessa lei,” disse Frenette.
O relatório critica até a escolha do nome de Oliveira Silveira (1941-2009), poeta e militante do Movimento Negro de Porto Alegre, para batizar a biblioteca da instituição. “A escolha desse militante negro para nomear ações da Palmares (…) e seu próprio acervo, indica claramente a predominância de uma mentalidade voltada para a manutenção de um gueto marxista”.
Acordo ortográfico
Na seção “Desserviço à cultura”, o documento condena obras publicadas antes do Acordo Ortográfico de 2009. “Hoje, quem desejar ler na Palmares, por exemplo, ‘Papéis avulsos’, de Machado de Assis, encontrará uma edição de 1938, a qual prestará um desserviço ao estudante brasileiro, pois ele aprenderá a escrever ‘chronica’ em vez de crônica; ‘Hespanha’ em vez de Espanha; e ‘annos’ em vez de anos”.
Para o imortal Domício Proença Filho, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), quem busca um livro numa biblioteca, precisa ser, necessariamente, alfabetizado. “Não se aprende a escrever com a leitura de livros. Estes o conduzem a conviver com o conhecimento e a desenvolver capacidade”, pontua.
“Excluir livros anteriores ao Acordo Ortográfico é um grave equívoco. A medida, se aplicada, por exemplo, à Biblioteca Nacional, excluiria a maioria do seu riquíssimo acervo”.
Domício Proença Filho
Com informações do jornal O Globo e Folha de S. Paulo