Por Domingos Leonelli
A vitória de Javier Milei nas primárias argentinas me obriga a voltar a um tema que abordei há quatro anos no meu pequeno livro O Sentido Perdido da Revolução, Uma Autocrítica Não Autorizada da Esquerda Brasileira. Neste livro eu anoto que a esquerda brasileira liderada pelo PT abriu mão de uma agenda de transformações estruturais para se constituir em administradora progressista e mais humanitária do capitalismo. Fenômeno ocorrido em muitos outros países.
Em 13 anos de governos presididos por Lula e Dilma e com apoio do PSB, PCdoB , PDT, não se realizou, sequer se pautou, nenhuma reforma revolucionaria – no sentido mais amplo do termo emprestado por Caio Prado Júnior- e de alguma forma adaptaram-se ao modo de fazer política das classes dominantes. Não se realizou nem se lutou para fazer as reformas tributária, financeira e bancária, agrária, politica, das comunicações. Também, e aí juntamente com a direita e o centro, não se apercebeu das profundas mudanças mundiais a partir do novo paradigma econômico e social da Era do Conhecimento.
A esquerda realizou, sim, avanços sociais muito importantes para a população como o aumento considerável do salário mínimo(o mais importante na minha limitada visão) o Bolsa Familia, O Luz para Todos, a multiplicação de universidades federais e das Escolas Técnicas, incompreensivelmente com outro nome e outros. E, no governo Dilma, o Minha Casa Minha Vida, o Mais Médicos.
Como eram programas e não reformas estruturais , como o SUS por exemplo, alguns desses programas foram simp reduzidos ou simplesmente extintos. Tanto que a pobreza voltou a assolar o Brasil depois dos nefastos governos de direita e ultradireita de Temer e Bolsonaro.
Mas os pobres do Brasil ficaram para sempre gratos a Lula e o PT passou por todas as tempestades e continuou como o partido líder da esquerda brasileira.
Entretanto, a classe média e os filhos trabalhadores que também compõem a juventude brasileira queriam mais . Queriam um PT, um PSB e um PC do B, um PDT, originais, com posições firmes contra a corrupção, contra o fisiologismo e o patrimonialismo da chamada “classe política” . E passou a ver a esquerda como integrante de um sistema politico que assegura privilégios e enriquecimento ilícito.
Criou-se um vácuo no imaginário do povo e da juventude que nutriam uma certa ”esperança revolucionária” no PT e na esquerda . Juntou-se a isso uma certa reação , que sempre esteve latente, como coisa reacionária mesmo, de parte da população , contra certas demandas identitárias. Surge então uma figura caricata, farsante , reacionária e odienta como Bolsonaro que se coloca como um o anti-sistema, o anti- stablishment, a anti-politica, falando e agindo como uma voz contra o “politicamente correto”, contra a imprensa e a Rede Globo. E com a inestimável ajuda da Lava Jato que impediu a candidatura de Lula, ganha as eleições de2018.
E a ultra-direita, pela primeira no Brasil, ganha apoio popular, transforma-se num movimento de massas.
Agora na vizinha Argentina surge com força inesperada a figura de Javier Milei. Da mesma forma como surgiu Bolsonaro no Brasil e inúmeros outros fascistas em vários países do mundo. Quase sempre sucedendo governos de esquerda e experiências governamentais social-democratas. Quase sempre como a anti-política. Quase sempre radicalizando teses econômicas neo-liberais, privatizantes e voltadas para as origens do capitalismo revolucionário dos primeiros tempos, das revoluções burguesas, da competitividade selvagem.
Não é possível que isso não diga nada a esquerda.
Javier Milei é igual e diferente de Jair Bolsonaro. Como disse Antonio Gramsci há cem anos atrás o fascismo toma formas diferentes nos diversos países e regiões , contornos diversos de um movimento que não precisa de uma doutrina estruturada, nem de uma teoria realmente revolucionária. “Nossa doutrina é o fato” disse Mussolini lembrado por Lincoln Secco em seu excelente artigo sobre Gramsci e o Fascismo.
A captura da linguagem e de algumas práticas revolucionárias pela ultra-direita no sentido da anti-politica e da contestação da legalidade democrática , dá-se de igual forma entre Milei e Bolsonaro. Embora no caso de Bolsonaro logo depois das eleições o caráter mentiroso do “anti” ficou evidente com a sua captura pelo Centrão.
O anarco-capitalista Javier Milei tem outras diferenças substanciais em relação ao fascismo brasileiro. Diferentemente de Bolsonaro ele aborda temas econômicos de forma radical como as propostas de extinção do Banco Central Argentino, a dolarização da economia e a interrupção do negócios com a China. Confesso que ainda não descobri a que interesses econômicos do capitalismo argentino, essas propostas servem.
E no plano dos costumes as ideias de Javier Milei distinguem-se profundamente da hipocrisia fascista brasileira que se assenta na base social dos evangélicos. Milei defende a liberação das drogas, defende o amor livre, as uniões homo-afetivas e a livre comercialização de órgãos humanos. Consulta o tarot e se comunica com o espírito de um cachorro morto.
Distancia-se ainda da hipocrisia fascista brasileira quando se afasta de qualquer aproximação com os militares de direita.
Talvez seja mais perigoso para setores da elite argentina e mais perigoso para a democracia , exatamente por essa autenticidade extravagante. Talvez tudo isso faça parte de uma farsa. E assim se assemelhe mais a Bolsonaro.
De qualquer forma esse radicalismo – verdadeiro ou farsante- cresceu na Argentina como a ultra direita cresceu no Brasil com a pasteurização da política, com a frustração com a democracia, com a relativa impossibilidade de parte do povo distinguir entre os métodos da esquerda e da direita tradicionais.
Argentinos e brasileiros de esquerda deveriam pensar mais nesse assunto.