O Aterro Sanitário de Jardim Gramacho operou durante 34 anos, desde 1978 até o dia 03 de junho de 2012, quando oficialmente parou de receber lixo. Durante esse tempo, foi o maior depósito de lixo da América Latina e o principal da área metropolitana do Rio de Janeiro. Recebeu o lixo dos principais municípios metropolitanos: além do próprio Rio de Janeiro, acolheu detritos de Niterói, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Petrópolis, Teresópolis, São João de Meriti, Nilópolis, Queimada e Mesquita. Acumulou entre 60 e 80 milhões de toneladas de lixo.
Após 10 anos de seu fechamento, a promessa de revitalização do bairro e a justificativa na melhoria na qualidade de vida dos ex-catadores e moradores da região, jamais saíram da teoria. O aterro fica situado no município de Duque de Caxias, terceiro PIB (Produto Interno Bruto) do Estado e 21º do Brasil, segundo o IBGE.
Quando os veículos chegavam carregados de resíduos sólidos, os catadores já sabiam à distância o que vinha em cada um. Urubus e ratos também – eles se misturavam entre as mulheres e homens, a maioria mulheres negras, todos em busca de sobrevivência. O lixo era vertido sobre a montanha tóxica, um lugar chamado até hoje de “rampa” e de onde se avista, lá do alto, a imensa e poluída Baía de Guanabara.
A realidade dos catadores de Gramacho foi exibida para o mundo todo no documentário “Lixo Extraordinário”, do artista plástico carioca Vik Muniz, que não venceu a estatueta, mas chegou ao Oscar em 2011. O filme mostra o cotidiano dos trabalhadores enquanto eles ajudam a transformar parte do lixo recolhido em obras de arte. Apenas um ano após o lançamento do longa metragem, o aterro foi fechado para sempre – mas seu cheiro e até um certo calor do metano, um dos gases que agravam o efeito estufa, ainda se sente no ar, com tanta matéria orgânica apodrecendo debaixo da terra.
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O maior lixão da América Latina foi fechado às pressas pelo prefeito Eduardo Paes, então na época no MDB, um homem hábil em propaganda política, apenas duas semanas antes do início da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, em junho de 2012. Disse ele naquele dia que “o Rio não vai mais admitir violências contra o meio ambiente”. No mundo ideal, trancar a porta do aterro com um cadeado, como fez Paes (que reassumiu a prefeitura em 2021), seria o começo de uma gestão moderna de resíduos, com o fechamento de todos os lixões do país e a urbanização total do bairro – uma questão urgente e global em um planeta com 8 bilhões de pessoas, cada uma produzindo uma média superior a 1 quilo de resíduos por dia. Mas no mundo real de Gramacho, as leis da vida são duras e impuseram fome, miséria e medo desde o fechamento do aterro, há quase dez anos.
Da noite para o dia, catadores perderam sua única fonte de renda e caíram em um limbo do qual nunca conseguiram sair, levando junto maridos e esposas, filhos e netos, tias e sobrinhos – gente que ouviu promessas que nunca saíram dos sonhos, como cursos de capacitação, urbanização, centro esportivo, escola, hospital, plantio de árvores, apartamentos sociais. Uma caminhada pelas ruas de terra do bairro revela que aumentou o número de lixões clandestinos em terrenos próximos – um deles a poucos minutos da portaria principal do antigo aterro. O movimento de caminhões é constante, mas eles carregam principalmente lixo de construção, com pouco ou nenhum reciclável.
Mesmo com os portões do antigo aterro fechados e em seu lugar funcionando uma usina de produção de gás metano, para a Refinaria de Duque de Caxias, o lixo não está distante de seu antigo lugar. Há ainda diversos lixões funcionando e na entrada do bairro pela BR 040, um transbordo (dormitório do lixo antes de seguir para o Aterro). E se há lixo, há famílias que dependem dele, não para salvar o planeta, mais para não morrer de fome.
Crianças brincam ao lado dos cachorros com sarnas, urubus, ratos, porcos, moscas que voam em nuvem e pousam no rosto das mães que das janelas de madeira observam o dia. Segundo pesquisa da Ong TETO, a renda média per capita dos moradores de Jardim Gramacho é de R$ 331,96, cerca de R$ 11 por dia. O nível de pobreza com o aterro estava em 49,3%. Com o fim do lixão, avançou para 86,7%. Na saúde, 60% das crianças tem sarna e quase todos, doenças de pele. Não há energia elétrica, saneamento básico, água encanada e nem banheiro. As necessidades básicas são feitas em uma espécie de lago. Atualmente há 18 cooperativas de reciclagem de lixo, funcionando com aproximadamente 300 catadores. Outros quatro mil estão desempregados, vivendo na extrema pobreza e muitos não possuem sequer um documento de identidade. A falta do documento, dificultou ex-catadores por exemplo de receberem a indenização paga pela Prefeitura do Rio em 2012.
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Ex-catadores e moradores do bairro, buscam criar novas perspectivas e transformar a realidade das novas gerações de filhos e netos. A Rede Educare em parceria com a Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (ACAMJG), por exemplo, abriu uma biblioteca com 1.200 livros para a comunidade e que ainda auxilias os jovens no debate sobre a preservação da gravidez na adolescência, auxilia mães precoces e jovens grávidas. O Fórum Comunitário de Jardim Gramacho também promove oficinas de artesanato com as mulheres participando semanalmente de feira, no centro de Caxias, aulas de cidadania e também capoeira.
Ninguém parece interessado em desenvolver Jardim Gramacho, ou ao menos não deixar as pessoas desse bairro agonizarem a céu aberto, com mães se prostituindo para seus filhos não morrerem de fome. O município de Duque de Caxias, cidade da região metropolitana que tem um dos PIBs mais altos do Brasil, por incrível que pareça não possui nenhum projeto de reciclagem, embora tenha abrigado por tanto tempo o maior lixão do continente.
E o município do Rio, maior responsável pelo lixo levado durante 34 anos para lá, por mais absurdo que pareça está liberado de responsabilidade, pois pelo Plano Nacional de Resíduos Sólidos, aprovado em 2010, a coleta de lixo é de responsabilidade de cada município — e Jardim Gramacho fica em outra cidade, embora esteja colado ao Rio. É uma situação inacreditável, já que uma parte do aterro sanitário ainda pertence ao Rio. Em 2013, a prefeitura de Paes iniciou o aproveitamento do gás metano acumulado no solo do aterro para gerar energia para a Refinaria de Duque de Caxias (Reduc). Por contrato, o município recebe 18% da arrecadação com esse negócio. Apesar disso, a Comlurb afirmou em nota que o projeto “ainda está sendo finalizado”. A engenheira ambiental Luise Valentim, que há nove anos atua em Jardim Gramacho, não sabe que tipo de “vida útil” esse projeto teve, mas garante que ele existiu. Um funcionário da prefeitura que acompanhou o caso diz que o volume de gás foi superdimensionado pelo município, a empresa lucrou menos que o esperado e abandonou o projeto – mas nem um real do biogás chegou a Jardim Gramacho.
Vendo tudo isso, a constatação é simples: há um problema da segregação sócio espacial, pois quando decidiram colocar o “lixão” no bairro foi porque dentro de uma escala de importância, este lugar esteve em última posição e era o mais longe para esconder o mais feio. Isso mostra que na relação entre sociedade e espaço está incluída a relação entre espaço e valor. Jamais perguntaram aos moradores daquele bairro se, de fato, queriam um lixão ali.
Falta o principal e mais difícil: a ação dos governos. Foram eles quem criaram o passivo ambiental e social e agora ignoram a existência daquela gente. O lixo era fonte de renda para as famílias e sobrevivência. As promessas de tirarem o lixo, para dar educação, saúde, habitação, capacitação para inclusão no mercado de trabalho, não vieram. Ninguém quer saber de voltar lá e oferecer uma oportunidade e futuro para aquelas pessoas. Será que ainda lembram-se delas? Com isso, Jardim Gramacho volta a crescer em meio ao lixo e cada dia mais parecido com uma Bangladesh há apenas 14 km da capital do Rio de Janeiro. Em Jardim Gramacho você encontra de tudo, menos um belo e florido jardim.
Com informações da Agência Pública e Diário do Rio