A cidade de Xangai, um município chinês de 26 milhões de pessoas, está no 25º dia de lockdown. Um confinamento intenso, em que as pessoas não podem sair de casa — somente para realização de testes de Covid-19 —, drones patrulham as ruas, os infectados com o coronavírus estão sendo levados para “centros de quarentena” e chegou a haver falta generalizada de comida.
Leia também: China confina milhares de pessoas após aumento de casos de covid-19
Xangai é o caso mais extremo, mas não o único. Nas últimas semanas, dezenas de cidades chinesas impuseram o isolamento social de graus variados, e até a capital da China, Pequim, parece estar em risco: nos próximos dias, todos os 3,5 milhões de moradores do distrito de Chaoyang, o maior da cidade, serão testados três vezes pelo governo.
Enquanto isso, no Ocidente, diversos países já até desobrigaram o uso de máscaras em locais fechados e assumem que estamos em um período de normalidade: o “pós-Covid”.
No Brasil, a média diária de mortes por coronavírus caiu abaixo de 100, um patamar que não era alcançado desde abril de 2020, na primeira onda da pandemia. Nos EUA, mesmo com boa parte da população não querendo se vacinar, os óbitos também despencaram. Na Europa, com exceção do Reino Unido que vê o número de mortos aumentar, a situação também é “relativamente” tranquila.
A China vem tendo uma quantidade considerável de casos — desde março, foram mais de 500 mil —, mas com poucas mortes: semana passada, a média diária ficou abaixo de dez. Um número muito pequeno para um país de dimensões continentais. Segundo o governo chinês, 87,9% da população recebeu pelo menos duas doses da vacina.
Se é assim, por que a China continua fazendo lockdowns tão radicais? Há várias razões possíveis, mas elas podem ser agrupadas em três grandes hipóteses.
Hipótese 1: Responsabilidade
A China tem 1,4 bilhão de pessoas, e nenhuma vacina é 100% eficaz. Se o país deixar o Sars-CoV-2 circular sem restrições, como o Ocidente tem feito, um número considerável de chineses, mesmo vacinados, irá morrer — inclusive porque o país não tem acesso às vacinas de mRNA, que protegem mais. O país criou e está testando ainda a imunização, que ainda não foi aprovada.
Leia também: China: os 3 pilares da expansão do país na América Latina em 2 anos de pandemia de covid-19
A propagação descontrolada do vírus também poderia levar ao aparecimento de uma nova variante, que depois se espalha pelo mundo todo. Foi o que aconteceu com as variantes Alfa e Delta, que surgiram após grandes ondas de Covid no Reino Unido e na Índia.
Há também o fato que a cobertura vacinal chinesa não é uniforme. Segundo o governo, apenas 51% das pessoas acima de 80 anos foram vacinadas e somente 20% tomaram a terceira dose.
Hipótese 2: Gestão ineficaz
Nos primeiros dois anos da pandemia, a China se orgulhou de ter conseguido controlar, e evitar, o coronavírus. Era a política de “Covid zero”. Contudo, em 2022, a tática começou a falhar: mesmo impondo restrições, aplicando testes em massa e vigiando atentamente a propagação do vírus, o país não conseguiu mais zerar os casos.
O governo mudou o nome da sua política, para “zero dinâmico”, e continou com a firmeza no controle da pandemia: iniciou o lockdown de Xangai. Ele já dura quase um mês inteiro, mas ainda não se conseguiu zerar os casos de coronavírus — que até aumentaram nos últimos dias.
Leia também: China tem novo surto de Covid-19; Europa e Rússia registram recordes da doença
Além disso, diversos cidadãos começaram a se frustar com a situação de vulnerabilidade causada pelo isolamento radical, como a dificuldade em conseguir alimentos e remédios à postura rígida no controle dos contaminados.
Também houve uma nova indignação com a política de Xangai, que exige que todos os pacientes positivos para Covid-19 sejam isolados em instalações — até crianças e bebês. Uma mãe disse à CNN que foi separada de sua filha de 2 anos infectada em 29 de março e não foi autorizada a entrar na ala de isolamento para ficar com a filha até uma semana depois.
Hipótese 3: Fragilidade genética
A cidade de Hong Kong passou por uma forte onda de coronavírus, em fevereiro e março, e teve alta taxa de letalidade pela doença: em pessoas acima de 80 anos, ela chegou a espantosos 9,84%. Considerando a população como um todo, a taxa alcançou 37 mortes por milhão de habitantes no pico da onda em Hong Kong — muito acima dos piores momentos dos outros países. Confira no gráfico abaixo:
Isso levou alguns cientistas a especular que, por motivos ainda não compreendidos, o Sars-CoV-2 poderia ser mais letal para pessoas da etnia Han, que corresponde a 90% da população chinesa, inclusive em Hong Kong.
A hipótese foi quase totalmente descartada após uma análise minuciosa dos dados de contaminados, revelando que, durante a onda de coronavírus em Hong Kong, apenas 49% dos idosos estavam vacinados e somente 7% tinham recebido a terceira dose. Ou seja, não havia provas que mostrasse uma propensão genética e sim um deficit de imunização na cidade.
Entretanto, a relação entre genética e suscetibilidade ao coronavírus merece ser estudada. O continente africano, por exemplo, tem hoje menos de 17% da população vacinada e não foi foi arrasado pela pandemia.
Hipótese 4: A “Covid-19 longa”
A tomada de restrições mais radicais também pode significa o temor do governo em relação ao desenvolvimento da “Covid-19 longa” ou, mais criticamente, um comprometimento de longo prazo do sistema imunológico.
No final do ano passado, segundo uma estimativa da Universidade de Michigan, 100 milhões de pessoas no mundo estavam com Covid longa — que é caracterizada por sintomas que duram mais de 4 semanas, podendo ser permanentes. A vacinação diminui a gravidade do coronavírus, mas não impede que você pegue a doença. Ela também reduz, mas não elimina, o risco de ter a Covid-19 longa.
A Covid longa pode ter mais de 200 sintomas — incluindo alguns sérios, como deficiência respiratória, dor crônica, problemas de memória e cognição. É possível que a China esteja fazendo lockdowns porque receie o impacto dela sobre sua população.
A tese da preocupação com a variação prolongada do coronavírus é ainda mais validada quando, em março deste ano, cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan publicaram um estudo demonstrando que o vírus da Covid-19, quando permanece por muito tempo em um indívíduo, é capaz de atacar o sistema imunológico.
Ele usa um mecanismo diferente, que ainda não havia sido descrito, para infectar e destruir células T do subtipo CD4 — são as mesmas atacadas pelo vírus HIV, que causa a Aids.
Isso não significa, necessariamente, que o Sars-CoV-2 vá provocar algum comprometimento imunológico de longo prazo — em casos graves de Covid, o nível de células T cai e depois retorna ao normal, quando a pessoa se recupera. Mas em um cenário de possibilidades, o governo chinês pode ter se antecipado e decidido não expor sua população ao vírus.
Com informações da BBC, Reuters, CNN e Folha de S. Paulo