Em artigo anterior fiz uma tentativa de rápido diagnóstico da esquerda no Brasil e no mundo, onde localizei o nosso principal problema no acertado compromisso democrático assumido pela esquerda no mundo com a perda do sentido da revolução, razão principal da existência da esquerda.
A partir do pensamento de Gramsci, seguido pela pratica de Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer na Itália, Carlos Nelson Coutinho ,Werneck Viana e outros no Brasil, pela luta heroica de Salvador Allende no Chile e pela socialdemocracia europeia especialmente do chamado socialismo nórdico na Suécia e Dinamarca, esse compromisso com a democracia como valor universal também conduziu a esquerda a uma certa adaptação ao “status quo”. Esvaziamos de conteúdo transformador e revolucionário a nossa pratica política. E quando chegamos democraticamente aos governos passamos a administrar o capitalismo e, de certa forma, nos adaptar, também, às suas formas de fazer política.
Passamos a ser a principal força política a defender a ordem constituída que embora democrática mantinha a exploração do trabalho, a concentração da renda e as chamadas injustiças sociais, além de uma relação predatória com os recursos naturais.
No Brasil essa adaptação ao modo de fazer política (dinheiro nas eleições, uso eleitoral da máquina pública, substituição da militância por cabos-eleitorais) somada à defesa da ordem constituída socialmente injusta, transformou-nos aos olhos do povo em parte do sistema. Parte da sociologicamente esdrúxula conceituação de “classe política”. E essa “classe” está marcada pela corrupção, pela falta de escrúpulos, pela ineficiência.
É justamente nessa brecha que a ultra-direita apresenta-se como anti-sistema, anti-política, anti-status-quo. Utiliza-se de uma linguagem falsamente revolucionária e praticamente inaugura o uso político das redes sociais com técnicas científicas de manipulação compradas das big-techs norte-americanas e orientadas pelo mago da comunicação ultradireitista Steve Bannon. Consegue transformar um político tradicional com quase trinta anos de um mandato parlamentar absolutamente medíocre em falso “out-sider”, em líder nacional da extrema direita no Brasil representando o novo, o anti-sistema. Conquista grande parte da opinião pública e ganha as eleições presidenciais de 2018. Seu governo distoa do sistema que ele dizia combater apenas no negacionsmo das vacinas e (para alguns )na questão do desmatamento. No mais atende a todos os sonhos das elites dominantes, especialmente na desmontagem social e democrática do Estado. Banqueiros, especuladores financeiros, empresários do agronegócio, fabricantes e vendedores de armas, multinacionais dos alimentos, oligopólios de vários setores da economia, adoraram o surgimento e a existência de uma ultradireita no Pais que finge combater o “sistema político” e o Estado Nacional enquanto a direita real composta pelo Centrão et caterva protege seus interesses e privilégios de classe.
Ou seja o que se apresentava como “revolucionário” na verdade era a expressão da contra-revolução.
A ultra direita criou utopias e deu a elas um tratamento de comunicação moderno, superficial e de fácil assimilação: o sonho de um pais sem corrupção, sem comunismo, sem ideologia de gênero, sem mamadeira de piroca, sem kit-gay. Vestiu essa utopia num layout verde e amarelo da bandeira nacional, mas especialmente do time do Brasil na Copa do Mundo. Apelidou-se de patriota, enquanto seu líder batia continência para a bandeira norte americana e bajulava subservientemente o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. A mentira que sempre foi, de alguma forma, uma arma da política, passa ser produzida industrialmente através de robôs e algoritimos, as fake news.
E a verdade é que reinventaram a militância politica adapatandoa às novas tecnologias de comunicação da sociedade em rede. Enquanto isso nós aposentamos o sonho do socialismo, banimos qualquer referência a luta de classes, trocamos o interesse nacional e as utopias universais pelas demandas identitárias justas, mas frequentemente absolutizadas.
Claro que apresentei até agora um quadro esquemático muito resumido de um processo que acho que ainda está em andamento. Não mencionei por exemplo que a vitória de Lula em 2022 deveu-se muito mais ao seu acúmulo político pessoal oriundo dos avanços sociais realizados nos seus governos e ao seu próprio carisma, do que aos partidos que o apoiaram, inclusive o PT.
Mas assim como Bolsonaro não é a única carta na manga da direita, Lula não pode seguir sendo, como indivíduo, a única alternativa eleitoral para a esquerda e as forças democráticas. Se isso acontecer ele será cada dia mais dependente do Centrão e das forças do atraso.
Ele, Lula, poderá até ser o candidato em 2026, mas é necessário alterar a correlação de forças, encontrando uma forma de ampliar a a mobilização popular, fortalecendo os movimentos sociais e os partidos políticos em torno de bandeiras políticas nacionais modernas, de políticas públicas transformadoras e estruturais ( algumas delas já em andamento pelo nosso Governo) e, principalmente , através de posições ideológicas que se contraponham eficientemente às posições ideológicas da direita e da ultra-direita fascista.
Vale a pena lembrar que foi com posições puramente ideológicas e mentiras políticas, sem programa de governo ou propostas de políticas públicas que Bolsonaro ganhou as eleições de 2018 e manteve-se forte em 2022. Mesmo depois do seu desastrado governo.
Sei que serão necessários muitos movimentos, acordos parlamentares, concessões ao nível do poder executivo e manobras políticas para continuar governando e avançando, ainda que lentamente. Sei da necessidade real de contarmos com o centro democrático, com setores conservadores e até com o Centrão fisiológico e patrimonialista. Sei da impossibilidade de realizar rupturas mais profundas na direção de um combate mais eficaz à enorme desigualdade no Brasil na atual correlação de forças em que a esquerda é minoritária no parlamento, na sociedade e às vezes no interior do próprios partidos.
Mas sei também que pela primeira vez temos que enfrentar uma ultra-direita moderna, politicamente ativa, ideologicamente preparada e com base social bem definida (policiais, militares, evangélicos, empresários, profissionais liberais). Sendo que dentre os evangélicos está uma parte da juventude, uma parte dos trabalhadores, uma parte da classe média baixa e um número significativo de pessoas pobres. Eles, os evangélicos, estão engajados ideologicamente num sistema filosófico simplificado que lhes explica a própria existência e promete felicidade, num ambiente de relativa igualdade e solidariedade. E isso não é pouca coisa.
A mim parece óbvio que nem o centro democrático e nem os setores mais tradicionais da política dispõem-se a travar uma luta ideológica com o néo fascismo brasileiro. No máximo colocam-se contra os seus arroubos mais barulhentos e escandalosos. Este enfrentamento caberá, ou caberia, à esquerda se conseguir se repensar. Se além do apoio quase passivo ao governo LulaAlckmin, conseguir recuperar o sentido perdido da revolução inerente à origem e à existência da esquerda na história. Se for capaz de se reinventar enquanto militância mais solidária e companheira. Se conseguir bandeiras capazes de serem entendidas pela população independentemente do programas mais imediatos do governo. Mas isso é tema para um próximo artigo.
Domingos Leonelli
Secretário Nacional de Formação Política do PSB