Desde o início do mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em 2019, ao menos 124 medidas adotadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) podem ter gerado algum tipo de risco às políticas de proteção ambiental no Brasil. O levantamento é de pesquisadores ambientais e foi organizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que traz uma radiografia das medidas apresentadas até o momento pela gestão do titular da pasta, Ricardo Salles.
A pesquisa analisou 524 medidas administrativas do MMA desde janeiro de 2019. Nela há citações a pelo menos 76 de risco médio, 38 de risco alto e 10 de risco muito alto de perda da capacidade proteção ambiental. Seriam medidas eminentemente técnicas, como instruções normativas e portarias, voltadas a enfraquecer medidas de fiscalização de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Há também medidas voltadas a enfraquecer a estrutura do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável por gerir as unidades de conservação nacionais. O levantamento indicou que ao menos 40 medidas de médio, alto e muito alto risco vieram direto do instituto.
Socialista comenta estudo
O líder da Oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ), ressaltou o fato de Salles ter editado mais de 120 atos que apresentam riscos às políticas brasileiras de proteção ambiental e a necessidade da instauração da CPI do Meio Ambiente. “O pior ministro do Meio Ambiente da história”, escreveu.
Leia também: Oposição na Câmara articula CPI para investigar Ricardo Salles
“Dando Nome Aos Bois”
O estudo, chamado “Dando Nome Aos Bois”, rememora a a controversa frase dita pelo ministro na reunião ministerial de 22 de abril do ano passado. Na ocasião, o ministro afirmou que, por conta da atenção da sociedade na pandemia de covid-19, era o momento ideal para passar reformas “infralegais”, de “simplificação” e “desregulamentação” de leis ambientais.
Na sequência, chega a convocar outros ministros para “ir passando a boiada, ir mudando todo o regramento”, enquanto a imprensa estava ocupada tratando do impacto do novo coronavírus no Brasil. No dia da reunião, o Brasil acumulava 45 mil casos e quase três mil mortos, vítimas de covid-19. Mas o que o ministro queria dizer com “reformas infralegais” e “passar a boiada”?
Segundo o dicionário, o termo infralegal diz respeito a “atos e preceitos que não se encontram perfeitamente de acordo com os mecanismos legais”. E boiada? A expressão coloquial geralmente tem a intenção de traduzir uma situação de facilidade de entrada para algo ou algum lugar.
Salles quer flexibilizar legislação
Alessandra Cardoso, que redigiu o relatório e integra a assessoria política do Inesc, reitera que o estudo aponta uma tendência do atual governo. “De fato, nestes dois primeiros anos do governo bolsonaro, confirmando a própria estratégia do Salles, houve uma ação de editar atos normativos internos para produzir uma flexibilização da legislação e dos órgãos”, explicou.
“O ministério do Meio Ambiente foi tomado de assalto pelo Salles, agora a gente sabe disso, pelo Salles, que está seguindo uma estratégia do governo de desmontar a política ambiental e a capacidade institucional do órgão.”
Alessandra Cardoso
Alessandra argumenta que, por mais que a área ambiental seja fruto de constantes cortes de orçamento – que trespassam governos – o que ocorre hoje é “sem precedentes”. A proposta do estudo é corroborar com outros levantamentos do tipo feitos desde o início dos mandatos de Salles e Bolsonaro, além de indicar medidas que devem ser revistas em futuros governos.
Missão essa que será mais difícil do que parece, conforme a avaliação da assessora. “Embora seja até mais fácil de reverter em um outro governo, é mais fácil que reverter um processo legislativo, que tem todo um processo de aprovação no Congresso Nacional, o fato é que é muito difícil reverter todas as medidas infralegais, porque são muitas e é medida a medida”, aponta.
Boiada tem sucateamento, militarização e censura
Uma série de alterações de instruções normativas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), publicadas entre março e abril foi o que pode se considerar uma verdadeira boiada. Entre as alterações, a de número quatro autoriza a regularização de propriedades rurais em terras indígenas. A medida altera a “Declaração de Reconhecimento de Limites” e permite a invasão, a exploração e até a comercialização de terras indígenas ainda não homologadas.
Outra normativa é a número 13, que autoriza a diminuição da distância entre áreas povoadas e aquelas em que ocorrem pulverização de agrotóxico. A prática é considerada ilegal na maioria dos países da Europa e, há mais de 10 anos, é também responsável pela contaminação de moradores de comunidades rurais, indígenas, quilombolas e até escolas em áreas rurais. No começo de março, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, assinou uma portaria interna que restringiu o acesso de servidores do órgão à imprensa.
Leia também: Operação da PF contra corrupção faz busca contra Ricardo Salles
No mês seguinte, após repercussão da ação do Ibama contra garimpeiros que atuavam em terras indígenas no Pará, Salles demitiu o diretor de proteção ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo, e outros dois servidores que chefiavam as fiscalizações, Hugo Loss e Renê Luiz de Oliveira.
O cargo de diretor de proteção ambiental foi ocupado pelo coronel da Polícia Militar (PM) de São Paulo, Olímpio Ferreira Magalhães. Os outros dois postos foram preenchidos pelo coronel da reserva da PM Walter Mendes Magalhães Júnior e o servidor Leslie Tavares, que era analista ambiental do Ibama em Manaus e foi investigado em 2019 por ter devolvido a garimpeiros infratores embarcações que haviam sido apreendidas.
No dia 12 de maio, quando o Brasil possuía 3.949 pessoas vitimadas pelo covid-19, o governo federal assinou uma portaria que autorizava a reestruturação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Na prática isso significou uma redução de 11 para 5 no número de servidores responsáveis por 335 unidades de conservação em todo Brasil. Além disso, a portaria abriu a possibilidade para que as posições pudessem ser ocupadas por pessoas fora do órgão. O resultado foi que das cinco gerências do ICMBio, apenas uma é ocupada por um agente de carreira do órgão. As outras quatro são comandadas por policiais militares. A alteração é outro exemplo de mudança infralegal, porque não precisou passar pela chancela do Legislativo, e entrou em vigor imediatamente.
Grilagem e desmatamento
Após pressão movimentos sociais e ONGS que lançaram campanha denunciando a fala de Salles, algumas medidas retrocederam.
Uma foi o PL da Grilagem. Antes colocada para votação como MP 910, a medida não foi votada dentro do prazo e caducou. Patrocinada pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), o PL 2633/2020 promove a regularização de terras públicas ilegalmente ocupadas. Segundo analistas, na prática irá legalizar a grilagem de terras, além de ampliar o desmatamento na Amazônia e da violência no campo.
A reforma infralegal voltada à permissão de desmatamento da Mata Atlântica, citada pelo ministro na famosa reunião também não conseguiu passar. Emitida por meio de despacho 4.410/2020, a proposta, que também abre brecha para que os proprietários que foram multados pelo desmatamento sejam anistiados. O ministro anulou o despacho porém ele pode voltar a ser pauta.
Boiada de Salles ainda está por vir
Apesar da repercussão extremamente negativa da fala do ministro durante a reunião e da crise política e sanitária que o país enfrenta, o governo não desacelerou o andamento de aprovação de medidas para “simplificação” e “desregulamentação” de leis ambientais.
No último dia 25, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) transferiu do Ministério do Meio Ambiente, de Ricardo Salles, para o Ministério da Agricultura, de Tereza Cristina, a competência para realizar concessões de florestas públicas em âmbito federal.
Outro exemplo de ação de grande porte é a preparação para votação da PL do licenciamento ambiental. A quarta versão do projeto de lei, que tramita na Câmara há 15 anos, redigida pelo deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) foi criticada por propor afrouxamento ainda maior das regras para o licenciamento de obras.
O PL 3729 de 2004 pretende dar carta branca para que cada estado defina, de forma independente, quais serão as regras de seus processos de licenciamento. o texto não prevê compensações ambientais para impactos indiretos causados pelos empreendimentos. O PL retira do Instituto Chico Mendes (ICMBio) o poder de veto a empreendimentos. Outro item polêmico atribui ao Cadastro Ambiental Rural (CAR) dos agricultores o mesmo peso de um licenciamento ambiental.
Salles falta a reunião de Conselho da Amazônia
Ricardo Salles faltou a uma reunião do Conselho da Amazônia Legal na quarta-feira (26) e não enviou representante, o que provocou queixas públicas do vice-presidente, general Hamilton Mourão (PRTB). Para o vice, o gesto do auxiliar do presidente Jair Bolsonaro é “falta de educação”.
“Lamento profundamente a ausência do ministério mais importante, que não compareceu nem mandou representante, que é o ministério do Meio Ambiente. Lamento profundamente. Da forma que eu fui formado eu considero isso falta de educação.”
Hamilton Mourão
Mourão chefia o Conselho da Amazônia, estrutura que coordena as ações de preservação no bioma mas que passa por um processo de esvaziamento. O vice já entrou em choques anteriormente com Salles, que na semana passada foi alvo de uma operação da Polícia Federal que investiga um suposto esquema de exportação de madeira ilegal. Em janeiro, o vice convocou uma reunião sobre o fim das operações de GLO (Garantir da Lei e da Ordem) na Amazônia, mas Salles faltou e não mandou representante.
Com informações da Folha de S. Paulo, Congresso em Foco e Brasil de Fato