Por Marina Duarte de Souza, do Brasil de Fato
“BNDES empresta dinheiro para países comunistas”, “BNDES financia portos e aeroportos fora do Brasil”, “Lula e Dilma mandaram R$ 30 bilhões para fora do país” estas foram algumas das frases que circularam nos últimos dois anos para atacar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No dia 20 de janeiro o mito da “caixa-preta” do banco – que o governo de Jair Bolsonaro prometia revelar – caiu, como resultado de uma auditoria externa que custou R$ 48 milhões aos cofres públicos, e que não encontrou nenhuma ilegalidade ou ato de corrupção na instituição.
Para comentar esse e outros mitos relacionados ao BNDES o Brasil de Fato conversou com o economista Luciano Coutinho, presidente do banco de 2007 a 2016.
Como parte do processo de instrumentalização da Justiça como meio de perseguição política que assola o país nos últimos anos, Coutinho chegou a sofrer uma condução coercitiva da Operação Bullish da Polícia Federal, investigações do Ministério Público Federal e foi chamado para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do BNDES no Congresso Nacional.
Sobre esses fatos, ele afirma: “Não sei se é um ataque do judiciário, mas levantar suspeitas sem evidências, sem provas, nós coloca num mundo de arbítrio e, na medida em que todo o setor público é colocado em suspeita sem evidências, evolui-se para um processo de retrocesso de direitos”.
“Não creio que a Justiça brasileira esteja envolvida de forma sistêmica, mas houve um movimento. O combate a corrupção é um clamor legítimo, mas precisa ser feito dentro da lei, das regras e da Constituição”, diz.
Para ele o elevado valor da auditoria é resultado de o governo Bolsonaro “tentar encontrar irregularidades a todo custo”.
Confira a entrevista na íntegra:
Qual a importância do BNDES?
O BNDES é um grande banco de desenvolvimento, que opera no atacado. Não é tão conhecido pela população, não tem agência, conta, diferentemente dos bancos chamados de varejo. Mais recentemente, no período de 2004 até 2014, o Brasil teve um forte ciclo de crescimento com aumento do investimento na indústria e na infraestrutura, e também investimentos sociais. Investimentos logísticos, em tratamento de água e esgoto, em várias das capitais. Esses investimentos tiveram um suporte essencial do BNDES. Nós não teríamos, por exemplo, energia hoje. A energia elétrica deixou de ser um problema no país.
De onde vêm os recursos para os investimentos do banco?
Os recursos do BNDES vêm de três fontes. A primeira é o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT): 40% da sua receita fica vinculado ao BNDES para investimentos de desenvolvimento do Brasil. Essa é uma fonte relevante, mas agora há um projeto liberal que pretende eliminar a contribuição do FAT ao BNDES.
Outra fonte importante é que, ao longo de sua história ele acumulou uma carteira de crédito grande. Essa carteira tem uma inadimplência muito baixa. Os empréstimos são 99,9% honrados e eles retornam, à medida que eles vão sendo pagos para o banco e podem ser reemprestados. Então, uma coisa é o FAT e outra coisa são os empréstimos anteriores.
E finalmente, num período mais recente, durante os governos do ex-presidente Lula e da ex-presidente Dilma, o Tesouro Nacional, com autorização do Congresso emprestou ao BNDES. No período mais recente, após o impeachment da presidente, os governos seguintes forçaram o BNDES a devolver recursos. Isso foi uma das razões pela qual o banco encolheu, e uma das razões pela qual o banco deixou de ser uma alavanca proativa no financiamento da infraestrutura brasileira.
O BNDES financiou obras em outros países durante os governos Lula e Dilma?
Como o BNDES funciona: para uma empresa vender tratores, máquinas e equipamentos, ou um serviço de engenharia para um projeto no exterior, o BNDES pagava em reais aqui no Brasil ao exportador de produtos e serviços, o que fazia com que fossem gerados empregos no Brasil.
Ele não transferia dinheiro para fora. Esses serviços eram pagos, esses bens eram exportados. Por exemplo, os aviões da Embraer, grandes geradores hidroelétricos, tratores, equipamentos, colheitadeiras, equipamentos para usina de açúcar, vários desses equipamentos eram exportados e geravam emprego no Brasil. E o cliente lá fora pagava o BNDES em dólar a prazo. Então era um financiamento à exportação e que o BNDES recebia de volta, em dólar.
Portanto, existia desde os anos 90 toda uma sistemática legal e uma estrutura de Estado para financiar a exportação que exige crédito de longo prazo. Isso não é uma invenção brasileira. Os Estados Unidos, Alemanha, Japão, França, Coreia, China, Índia, Rússia, todos os países têm agências de crédito e seguradoras de exportação. O BNDES era, e deveria voltar a ser, a ferramenta do governo brasileiro para financiar esse tipo de exportação.
Quais foram os retornos para o país desse tipo de investimento?
Nesse período o BNDES financiou R$ 1,6 trilhão e uma fatia de menos de R$ 40 bilhões foi para financiar exportações para outros países. De que exportações nós estamos falando? Exportações de serviços de engenharia e construção e equipamentos produzidos no Brasil. Esse, inclusive, é um mercado muito disputado. O Brasil tinha uma fatia pequena, infelizmente agora não tem mais nada.
O BNDES foi uma alavanca que permitiu o crescimento do autoemprego e a criação de 13 milhões de novos empregos diretamente associados às atividades do banco. Essa é a verdade.
Mas como incomodou muitos interesses, se criou toda uma fantasia em torno das atividades do BNDES, buscando diminuir seu papel para abrir mais espaço para esses interesses. Há uma verdadeira guerra ideológica contra o banco de desenvolvimento.
Por que você acredita que o BNDES sofreu esses ataques?
Em parte, começou na campanha eleitoral em 2014 toda uma fantasia de que o BNDES estava financiando obra no exterior e governos estrangeiros, em detrimento da infraestrutura no Brasil. O que é uma falácia, uma mentira. Mesmo os que eram informados não abriam mão de usar esse argumento, porque esse parecia um argumento fácil de ser entendido. Como qualquer fake news, é atraente quando é facilmente entendido e vira um boato.
Posteriormente com a questão das delações premiadas da Petrobras criou-se a fantasia de que haveria no BNDES algo parecido, e que o BNDES teria sido um repositório de operações ilícitas, associadas a doações políticas, o que absolutamente não é verdadeiro.
O que representa o fato de a auditoria não ter descoberto nada? O que representa esse valor de gasto na auditoria, R$ 48 milhões?
É importante apontar que primeiro houve uma auditoria interna, que não custou mais do que horas de trabalho dos funcionários. Mas como foi feita internamente muitos argumentavam que era uma auditoria enviesada. Essa auditoria interna foi feita com muito cuidado por pessoas que não tiveram nada a ver com aquele tipo de operação e o fizeram de forma correta e séria.
Não obstante, muita pressão foi feita para que o banco contratasse um auditor externo e efetivamente foi contratado um auditor que tinha grande experiência nas empresas internacionais que tiveram problemas de corrupção. Era uma auditoria que tinha muita tecnologia e capacidade de cruzar informações. E a conclusão foi de que não há nenhum indício de favorecimento ou de influência indevida nos processos decisórios.
Ou seja, o resultado final desta auditoria resgata a impessoalidade, a lisura e a integridade de todos os procedimentos do banco, do seu quadro técnico e dos seus dirigentes, inclusive da minha pessoa. Nesse sentido, eu acho que é uma contribuição positiva para estabelecer a verdade, que foi tão vilipendiada por alguns.
Colocar nua a verdade dos fatos é saudável para a democracia brasileira e para o resgate da instituição.
O senhor considera que houve alguma arbitrariedade da Justiça, Polícia Federal ou Ministério Público nas investigações em torno do BNDES?
No caso da Petrobras houve alguns diretores que foram denunciados por doleiros ou por outros empresários, que fizeram delações premiadas e acusaram diretores. No BNDES não aconteceu nada disso, não há nenhuma acusação de empresários, de empreiteiros ou de outros agentes econômicos em relação ao BNDES. As fantasias e as acusações que motivaram o Ministério Público a pedir autorização para uma operação de busca e apreensão, de condução coercitiva de quase 40 funcionários da instituição, foi baseada apenas em suspeitas e em nenhuma evidência concreta. Uma operação atentatória aos direitos constitucionais de defesa, de presunção de inocência, que foi substituída por uma presunção de culpa que “justifica” uma forma arbitrária de colher essas informações, e que posteriormente deram origem a um processo inconsistente de denúncia. Inclusive, porque o próprio juiz retirou desse processo os funcionários da instituição. No caso do BNDES efetivamente atentou contra os direitos básicos, atentou contra o devido processo legal, pode ser até que as intenções fossem boas, mas a forma como foi feita atentou contra os direitos da cidadania.
Não sei se é um ataque do judiciário, mas levantar suspeitas sem evidências, sem provas, nós coloca num mundo de arbítrio e, na medida em que todo o setor público é colocado em suspeita sem evidências, evolui-se para um processo de retrocesso de direitos. Não creio que a Justiça brasileira esteja envolvida de forma sistêmica, mas houve um movimento. O combate à corrupção é um clamor legítimo, mas precisa ser feito dentro da lei, das regras e da Constituição.
Como está o BNDES hoje? Qual sua opinião sobre a política atual do BNDES?
A política declarada da atual equipe econômica é ultraliberal, é pró-privatista e tem uma política fundamentalista que acredita que o mercado é um nirvana que vai resolver tudo com a maior eficiência, e que o Estado deve ser reduzido ao máximo. Essa política é uma política antiga e ultrapassada, não obstante ela vem sendo perseguida. Dentro dessa grande diretriz, encolher o BNDES e acreditar que o mercado de capitais vai suprir todo financiamento de longo prazo é uma fantasia que pode custar caro.
Nada contra o mercado de capitais, eu trabalhei muito para estimular o mercado, mas o mercado funcionará bem se tiver parceria com o setor público, junto com projetos de desenvolvimento bem feitos, bem elaborados, que possam ser bancáveis a longo prazo por bancos públicos, por bancos privados e pelo mercado em seu conjunto.
Quando o Brasil de fato colocar em marcha um ciclo de desenvolvimento de grande escala, para sustentar esse desenvolvimento precisaremos investir muito mais do que estamos investindo, pelo menos R$ 400 bilhões adicionais a cada ano. Quem é que vai financiar isso, a infraestrutura a longo prazo, a inovação tecnológica onde a incerteza é elevada, a sustentabilidade ambiental onde falhas de mercado são muito importantes e é necessário a intervenção da política pública? Quem é que vai financiar isso se não um banco de desenvolvimento? Se o BNDES tiver passado de ser um banco importante que tinha uma capacidade relevante de financiar, a um banco minúsculo e pequeno, vai fazer falta e vai representar um desserviço para o desenvolvimento do Brasil.
Como o trabalhador lá na ponta vai sentir essa diminuição do BNDES?
Criação de emprego de maneira sustentável e firme depende de novos investimentos. Os novos investimentos não virão sem infraestrutura, sem energia, sem transporte, sem redução do custo Brasil, sem portos, sem saneamento, sem saúde pública em grande escala. Esses investimentos em parte são feitos diretamente pelos governos e em parte são financiados. E a grande fonte de financiamento de longo prazo é o BNDES. Então, a ausência do BNDES se traduz em uma taxa de crescimento baixa, e isso significa menos emprego e trabalho mais precário para o brasileiro. Então os trabalhadores sentirão na carne, sentirão mais do que o resto da população de renda alta, que têm patrimônio e como se defender, enquanto o trabalhador só tem o seu trabalho para sobreviver.
Fonte: Brasil de Fato