
Ao pedir demissão do posto de curadora da Festa Literária de Parati (Flip), a editora Fernanda Diamant afirmou que o evento agora precisa de uma curadora negra para reinventá-la nesse mundo pós-pandemia.
Em nota enviada ao O Globo, Diamant ressaltou que “ao longo de 18 anos”, a curadoria da Flip jamais foi ocupada por uma pessoa negra. “Passou da hora disso mudar”, escreveu. “Por essa razão, decidi pedir demissão e declarar meu desejo de ceder esse espaço de privilégio de forma pública”, disse Fernanda, que ingressou na Flip em 2018.
Segundo ela, a pandemia de Covid-19 acelerou a necessidade de repensar a festa literária. “A pandemia se agravou, a condução genocida que o governo federal fez da crise sanitária deixou tudo muito sombrio. Cada vez mais me parecia que a celebração desenhada previamente pertencia a uma outra época e tinha perdido sentido. Não havia nada a ser comemorado. Ainda não há. Era preciso repensar a curadoria e até mesmo o próprio evento — virtual ou não — à luz dos acontecimentos”, diz a nota.
Mas Fernanda também se disse tocada pelo contexto de intensas manifestações e iniciativas antirracistas que inspiram o mundo a rever a questão racial. De acordo com ela, “a poderosíssima reação impulsionada pelo movimento Black Lives Matter” a “fizeram entender que precisamos lutar mais ativamente, agir da forma mais contundente possível”.
Repercussão
A filósofa e escritora Djamila Ribeiro recorreu às redes sociais para expressar sua opinião em relação à atitude da ex-curadora.
“Fernanda Diamant entendeu, de forma muito profunda, que lugar de fala é também uma postura ética. É entender, do seu lugar social, a importância da reivindicação histórica de outros grupos. É extremamente importante reinventar a maior festa literária do país em um momento em que autores negros estão na lista de mais vendidos e quebrar o silenciamento histórico.”
Bishop
Sob a curadoria de Fernanda Diamant, no final do ano passado, foi anunciado que a homenageada deste ano seria a poeta estadunidense Elizabeth Bishop, que viveu duas décadas no Brasil. Com saída dela, nesta sexta-feira (14), a Flip anunciou que Bishop não será mais homenageada pela festa literária.
“Com a saída da curadora convidada, a homenagem a Elizabeth Bishop, parte do Programa Principal da Flip, é encerrada com o Ciclo da Autora. Homenageada, realizado em parceria com o Sesc”, disse em nota Mauro Munhoz, presidente da Associação Casal Azul, que realiza a festa literária.
Confira íntegra da nota de Fernanda Diamant ao O Globo:
A Flip é um dos oásis culturais do Brasil. A Festa, cada vez menos elitista em decorrência do aumento das chamadas casas parceiras, concentra discussão de ideias, apoio à leitura e aos livros, divulgação e revelação de autores, encontro entre pessoas, liberdade de expressão, celebração. Desde a curadoria de Josélia Aguiar, o programa principal também passou a ser mais diverso. Há ainda a biblioteca comunitária mantida pela Flip que funciona o ano todo na Ilha das Cobras — uma das áreas mais vulneráveis da cidade de Paraty —, agora ameaçada por falta de recursos.
Em agosto de 2018, aceitei o convite para ser a curadora da Festa da Literatura Internacional de Paraty de 2019. Euclides da Cunha, o autor homenageado, foi uma escolha de comum acordo entre curadoria e direção artística. Dos cinco autores mais vendidos em Paraty em 2019, quatro são autores negros e um indígena — Grada Kilomba, Ayobami Adebayo, Kalaf. E palanga, Gael Faye e Ailton Krenak. Foi a primeira vez que isso aconteceu. A escritora Marilene Felinto acusou o racismo de Euclides em sua participação, questão que também foi bastante discutida no Ciclo do Autor Homenageado, uma parceria que a Flip faz com o Sesc CPF, e que teve minha curadoria em parceria com a professora Walnice Nogueira Galvão.
A boa recepção da Flip com Euclides da Cunha fez com que o convite para a curadoria se repetisse em 2020. Minha principal exigência para seguir era que a homenageada fosse dessa vez uma mulher. Tendo isso em mente, optamos por homenagear Elizabeth Bishop, novamente uma escolha compartilhada entre curadoria e direção artística (era desejo antigo da Flip homenagear Bishop). A ousadia de decidir pela primeira vez por uma estrangeira me pareceu um bom desafio: num momento de fechamento de fronteiras e acirramento de nacionalismos, me parecia ser oportuno olharmos para fora como modo de olharmos também para dentro. E, ainda, seria uma forma de prestar homenagem também aos grandes tradutores de poesia no país. O Brasil tem uma tradição fortíssima de tradução, que é desconhecida de muitos.
Além disso, a própria Bishop verteu poesia brasileira para o inglês, apresentando ao mundo anglófono escritores como Drummond e Clarice Lispector. O fato da poeta ser homossexual também pesou — lembrando que o preconceito com a população LGBTQI+ vem num crescente no Brasil. Dentro de minha curadoria, pretendia ressaltar sua biografia multifacetada, trágica e queer. Para além da homenagem, eu havia decidido que pelo menos metade dos convidados de 2020 seriam autoras e autores negros, o que também seria inédito. Eu já tinha a maior parte dos convites confirmados quando veio a Covid 19.
Desde o princípio defendi que não se poderia definir prematuramente uma nova data para o evento. À minha revelia, a Flip foi postergada para novembro. A pandemia se agravou, a condução genocida que o governo federal fez da crise sanitária deixou tudo muito sombrio. Cada vez mais me parecia que a celebração desenhada previamente pertencia a uma outra épocae tinha perdido sentido. Não havia nada a ser comemorado. Ainda não há. Era preciso repensar a curadoria e até mesmo o próprio evento — virtual ou não — à luz dos acontecimentos. Ainda, em meio às denúncias crescentes do movimento negro brasileiro, veio o brutal assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, no dia 25 de maio, e a poderosíssima reação impulsionada pelo movimento Black Lives Matter. Esses dias mais intensos de levante antirracista me fizeram entender que precisamos lutar mais ativamente, agir da forma mais contundente possível.
Mais que uma programação com autoras e autores negros, a Flip agora precisa de uma curadora negra para reinventá-la nesse mundo pós pandemia. Uma mulher negra, na minha opinião, é a renovação que o evento mais importante da literatura do país precisa. Ao longo de 18 anos, a curadoria da Flip jamais foi ocupada por uma pessoa negra. Passou da hora disso mudar. Como curadora, entendo que é meu papel levar em conta questões artísticas e políticas (sendo que a arte, por sua vez, é sempre política). Por essa razão, decidi pedir demissão e declarar meu desejo de ceder esse espaço de privilégio de forma pública. A direção da Flip reagiu positivamente à minha ideia, o que me deixa esperançosa. Sou sinceramente grata a Flip por tudo que pude aprender e criar nesse trabalho, que é acima de tudo coletivo.