Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo
Professor universitário, advogado e cientista político
É inegável que a sociedade passa por um momento de transformação social muito grande, uma vez que estamos definitivamente sob a égide da comunicação digital. No Brasil, sobretudo, temos um imenso desafio com as redes sociais, haja vista a facilidade de disseminação de notícias falsas e a dificuldade de acesso a fontes confiáveis que grande parte da população ainda possui.
O funcionamento das redes sociais em si representa fonte de questionamentos e respostas. O sistema de algoritmos utilizado por algumas delas, por exemplo, aprofunda as divisões nocivas de ideias, ao permitir que as pessoas só tenham acesso a postagens que correspondam a aquilo com o que concordam. Democracia digital?
A combinação dos tempos atuais é explosiva, uma vez que se vive uma crise sanitária sem precedentes, combinada com uma economia que patina e clima político instável, permeado por agressividade. Aparentemente, o ambiente permanente de eleições com um quê de Guerra Civil digna de quadrinhos de super-heróis faz com que as pessoas dediquem seus dias a postar as chamadas hashtags, de modo a influenciar debates e dar a entender que uma parcela de usuários de redes sociais apoia ou despreza determinada pessoa ou assunto.
Para aqueles que perderam: Guerra Civil é uma série de quadrinhos da Marvel, que põe em conflito o Homem de Ferro e o Capitão América. Em 2016, a Marvel Studios lançou um longa-metragem baseado na história, como parte dos filmes da saga “Vingadores”, que foi permeado por debates virtuais a respeito de que “time” cada pessoa defendia. O autor recomenda fortemente que você não se baseie nos quadrinhos para defender o Capitão América nos filmes.
A política não fica fora disso: todos os dias há postagens de algum assunto que divide opiniões, gera polêmica. Quase sempre se trata de tópicos envolvendo o atual o governo, com apoio ou rejeição. Frequentemente com o uso de robôs, que merece uma abordagem separada em artigo próprio. Por vezes, usuários famosos com muitos seguidores se posicionam sobre esses tópicos – isso quando não estão no centro da polêmica.
Pois bem, no fim de semana do Dia das Mães, o mundo virtual brasileiro foi varrido por uma notícia que, anos atrás, possivelmente não teria a mesma relevância: o influenciador digital Felipe Neto publicou um vídeo cobrando abertamente que seus “colegas de profissão”, assim como artistas e demais famosos em geral passassem a se posicionar de forma mais contundente contra atos antidemocráticos e pensamentos fascistas. Cobrou, basicamente, responsabilidade política.
Felipe Neto é um exemplo famoso de pessoa que se notabilizou por compartilhar conteúdo na internet e, assim, influenciar outras pessoas – daí o nome “influenciador”. São pessoas que se alçaram à condição de celebridades entre determinados nichos sociais por diversas razões – em especial por compartilhar opiniões sobre assuntos que pessoas julgam ser interessantes.
A última atitude de Felipe Neto é o clímax (até o momento) de um conflito aberto contra o atual governo, contra o qual faz oposição diuturnamente. Interessante frisar que o influenciador fez sucesso anos atrás com vídeos postados na plataforma YouTube contendo críticas ácidas ao governo PT. Ou seja, ele nunca negou uma veia política.
É verdade que existe uma necessidade urgente de posicionamento firme contra determinadas práticas – especialmente contra discursos que se valem da democracia para tentar reprimir a democracia. Mas é mais importante ainda lembrar que os influenciadores digitais também são pessoas. Por isso, fadadas a erros e acertos, críticas e elogios.
Hoje se vive em uma era onde a informação não falta, mas sobra. É fácil achar informações sobre qualquer coisa. É fácil achar opiniões sobre qualquer coisa. O problema não é mais a falta de insumos, mas o excesso de fontes. É efetivamente muito difícil buscar fontes confiáveis de informação hoje.
É por isso que a responsabilidade de um influenciador talvez seja um pouco maior do que a de pessoas que não possuem o mesmo alcance. É muito importante ter em mente que não se trata apenas de opinar, mas sim de qualificar o argumento. É notável que os tempos atuais, com o aumento (ou revelação) dos discursos de ódio e pessoas intolerantes requerem uma resposta efetiva, mas a solução para a ameaça constante que a democracia vive não vem de forma rápida.
Conforme a provocação do brilhante autor Gustavo Zagrebelsky [1], aparentemente hoje a expressão “democracia” não desperta mais divisões. O que desperta divisões é a sua concepção, uma vez que a democracia se tornou uma arma nas mãos de forças que procuram dominar as outras forças, desqualificando-se reciprocamente. Ele fala da Itália, mas facilmente poderia ser transmutado para o Brasil; aqueles que não querem destruir a democracia parecem querer utilizá-la apenas para destruir os opositores.
O posicionamento de celebridades como Felipe Neto é elogiável, pois vem embasado com argumentação firme e razões que levam o seu público a ao menos discutir o assunto com alguma profundidade. Só que, junto com a discussão civilizada, é preciso vir uma boa dose de democracia. Não a que é utilizada apenas para destruir a argumentação dos opositores diante de sua plateia, mas sim a que incentiva o debate civilizado e recheado de ideias, onde os posicionamentos possam dar origem a algo melhor e mais firme. Não há saída fora da política.
Quando se trata dessa palavra, é muito importante a análise do texto “reflexões sobre o conceito de política”, de Philippe C. Schmitter [2]. Em resumo, o autor indica ser a política uma ferramenta de resolução de conflitos, que permite que dois ou mais lados se choquem sem que haja a destruição completa de um deles. Ou seja: é preciso separar ofensa de opinião, assim como é preciso separar fatos de achismo.
Portanto, é muito elogiável que existam movimentos favoráveis a uma maior responsabilidade política de influenciadores digitais, com posicionamentos mais firmes a respeito de práticas ou discursos criminosos. É muito elogiável que se cobre isso de outras pessoas com maior alcance. Porém, para atingir a correção dos rumos da democracia, é dever de todos a qualificação do debate. E, caso a pessoa não se sinta segura de promover tal discussão, não há problema. O maior problema se encontra em posicionamentos vazios, que abrem espaço apenas para mais polarização e mais “guerra de torcidas”.
Hoje se insiste em saídas fáceis, discursos bonitos e soluções mágicas. Mas nada disso é real ou palpável. Portanto, não se trata apenas de posicionamento: se trata de entender sobre o que se está discutindo, ponderar os argumentos, estudar o assunto e, só aí, expor o que pensa. O achismo puro não é a saída pra tudo. Tampouco o é o posicionamento apenas por se posicionar. Para ficar didático: lembrem-se que o achismo do Capitão América e do Homem de Ferro foi o que levou ao desastre no final da Guerra Civil dos cinemas.É por essas e outras que é preciso, com urgência, vencer o “eu acho”. A saída é pelo diálogo e pela elucidação. Soluções “fáceis” e argumentos rasos não beneficiam a sociedade.
[1] Ver “A Crucificação e a Democracia”, do autor Gustavo Zagrebelsky
[2] Artigo disponível nesse link: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rdpcp/article/view/59651