A autonomia do Banco Central foi aprovada no Plenário da Câmara dos Deputados por 339 votos a 114 na noite de quarta-feira (10). A medida formalizou a gestão econômica brasileira com os olhos e atenção voltados à proteção dos interesses do mercado.
Encaminhada à sanção presidencial, a proposta teve origem no Senado e oficialmente concedeu a autonomia à instituição. A nova lei define mandatos do presidente e dos diretores com vigência não coincidentes com o mandato de presidente da República. O tema vinha sendo debatido no Legislativo há 30 anos, desde 1991.
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Com a eleição do deputado Arthur Lira (PP-AL) para o comando da Câmara, o assunto estava no topo da lista de prioridades do governo Jair Bolsonaro (sem partido). O parlamentar alagoano recebeu a alcunha de “desengavetador geral da República” durante passagem pela presidência da Comissão de Constituição e de Justiça e Cidadania (CCJC) na era Eduardo Cunha.
O histórico de Lira é colocar em debate temas polêmicos, como a maioridade penal. Agora, na cadeira de presidente da Câmara, confirma a fama ao pautar e aprovar, em prazo recorde, a autonomia do Banco Central.
Como será a autonomia do Banco Central
A votação suscitou diferentes reações de parlamentares. Entre os especialistas, a oficialização da ausência de interferências governamentais na regulação monetária gerada pela proposta também é alvo de diferentes opiniões.
Mesmo entre economistas a tese de que a aprovação da nova norma resultaria em um possível aquecimento da economia e melhoraria a imagem do país perante outras economias mundiais é contestada, sobretudo pelos riscos que esta gerará ao Brasil.
As funções básicas do BC consistem na regulação da estabilidade da moeda, por meio do controle de taxas de juros e de câmbio, por exemplo. Além disso, ele também atua como uma agência reguladora dos demais bancos, fornecendo créditos, fiscalizando e intervindo em decisões – tudo isso funcionando como uma autarquia do governo, criada em 1964 e exercida desde então, vinculada e orientada pelo Ministério da Economia.
Atualmente, o Banco Central tem nove diretores e um deles preside a instituição. Depois de indicação do presidente da República, os indicados são submetidos à sabatina e votação no Senado Federal. O texto do PLP 19/2019 não alterou a composição dessa diretoria colegiada, mas estabeleceu mandato de quatro anos para o presidente do órgão e demais diretores. Todos eles podem ser reconduzidos ao cargo, uma única vez, por igual período.
Pela proposta definida pelo Legislativo, o mandato da presidência do BC não coincidirá com o da Presidência da República. O presidente do Banco Central assume o cargo no primeiro dia do terceiro ano do mandato do presidente da República.
Hoje, o BC é vinculado ao Ministério da Economia, apesar de não ser subordinado à pasta. Com a proposta, passa a ser uma autarquia de natureza especial caracterizada pela “ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica”.
Os rumos da política monetária, que consiste no controle dos preços com a calibragem da taxa básica de juros, seguirá sendo determinado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Cabe ao Banco Central calibrar os juros básicos da economia e o montante de dinheiro em circulação para cumprir essa meta. Caso não cumpra a meta, o presidente da instituição se explica ao ministro da Economia.
O projeto estabelece como objetivo fundamental do Banco Central assegurar a estabilidade de preços (controle da inflação). A proposta estabelece outros objetivos: zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Os dois últimos objetivos, ligados à atividade e ao emprego, serão novidades entre os objetivos do BC.
Riscos da autonomia do Banco Central
Em 2019 o tema foi reapresentado no Congresso e suscitou preocupação de estudiosos, como o economista Paulo Feldmann. O professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP) alertava que a perda dessa regulação admitiria o domínio do mercado financeiro sobre as decisões do governo sobre a economia.
Em entrevista ao jornal da USP, o docente afirmou que a principal ameaça da medida é consolidar uma prática já executada pelo Banco Central: não cumprir moratórias estipuladas para que um funcionário de uma instituição financeira privada possa ocupar um cargo no BC, e vice-versa. Isso impede que a função de agência reguladora dos bancos seja exercida plenamente.
“Com o Banco Central sendo ocupado por pessoas do mercado financeiro – que saem dos bancos e vão ocupar cargos no BC, depois saem do BC e voltam para os bancos – o BC não exerce sua função de agência reguladora, pelo contrário, ele trabalha orientado pelos bancos. No fundo, quem manda no BC são os bancos do Brasil, é um mercado. E então eles querem mandar ainda mais e querem tentar interferir ainda mais nesses preços todos, como taxa de juros e de câmbio.”
Paulo Feldmann, Jornal da USP (23/5/2019)
Na avaliação de Feldmann, com o controle do Banco Central por agentes financeiros, as taxas de juros também serão reguladas por eles. Se houver aumento dos valores cobrados para potencializar o lucro dos bancos, gerará alta da inflação e desemprego. É o chamado trade-off: uma ação econômica para resolver um problema que acarreta outros.
O docente explica que no mundo inteiro a grande preocupação dos bancos é com a inflação. Para o sistema financeiro, o ideal é inflação zero. Contudo, para o economia de um país, eventualmente pode ser necessária uma certa inflação.
“É natural isso em qualquer país do mundo, mas aqui, se o Banco Central fosse independente, isso não seria possível. O governo perderia essa possibilidade de estabelecer uma política econômica de geração de empregos, que tivesse algum caráter um pouco inflacionário”.
Paulo Feldmann, Jornal da USP (23/5/2019)
O professor da USP aponta que o fracasso de experiências de países latino-americanos que optaram por ceder autonomia a seus bancos centrais. À época da entrevista, ele recordou as medidas adotadas pelo governo argentino Mauricio Macri, que deixou o cargo com o país imerso em uma recessão.
Feldmann comparou a linha econômica adotada ex-presidente Macri à de Paulo Guedes. Ambos adeptos da cartilha neoliberal: privatização total, abertura do mercado e estímulo a importações. Na Argentina, a fórmula destruiu o país. No Brasil, em análise realizada em um período pré-pandemia, o docente recomentou atenção a países que optaram por um banco central independente. “Porque BC independente significa que o governo federal está abrindo mão de direcionar a economia”, alertou.
Ideologia difusa
A polêmica em torno do projeto não encontrou unidade nem na oposição nem entre os neoliberais. A deputada Tábata Amaral (PDT-SP), liderança proeminente no campo de esquerda, votou a favor da proposta. Enquanto Aécio Neves (PSDB-MG), foi contrário.
Pós-Política x Banco Central
A dissonância de posicionamento acerca da autonomia do Banco Central entre representantes de direita e esquerda pode ser explicada a partir do conceito de pós-política. Trata-se de um fenômeno que pretende separar a ideologia da política. Grupos que se autodenominam terceira via, por não se posicionarem nem à esquerda, nem à direita do espectro político.
A socióloga e youtuber Sabrina Fernandes considera a autonomia do Banco Central um ótimo exemplo de pós-política. A marxista analisa esse fenômeno no Brasil em seu livro “Sintomas Mórbidos”. Ela define esse conceito como forma de negar as ideologias, associadas à emoção e irracionalidade.
Influenciadores e políticos opinam
Ciro Gomes (PDT), candidato derrotado nas Eleições presidenciais de 2018, gravou um vídeo com críticas à autonomia do Banco Central.
Guilherme Boulos (PSOL-SP), membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores sem Teto e segundo colocado nas eleições para prefeito de São Paulo (SP) em 2020, comentou que o mercado financeiro vai decidir o destino da economia e deixar de fora dessas decisões a população brasileira.
O economista Eduardo Moreira alerta que a independência do Banco Central resulta em dois grupos de poder para definir o destino da população brasileira. Um votado pelo povo e outro escolhido pelos donos do sistema financeiro.
Visão Socialista
A Autorreforma do PSB sustenta que falta ao Brasil um Plano Nacional de Desenvolvimento que determine ferramentas de gestão macroeconômicas a serviço prioritário da produção, do trabalho e da redução das desigualdades. Para os socialistas, o Banco Central não pode estar a serviço dos interesses dos banqueiros e dos rentistas.
O Conselho Monetário Nacional (CMN) e o Banco Central do Brasil (Bacen), órgão operacionalizador das políticas estabelecidas pelo primeiro, não podem atuar de forma autônoma das definições governamentais. As políticas conduzidas pelo Conselho devem estar casadas com as estratégias nacionais de desenvolvimento econômico e social. A autonomia do Banco Central é um desatino e um desestímulo a quem deseja produzir e é nociva à adoção de um Projeto Nacional de Desenvolvimento.”
Autorreforma do PSB