Com as falhas de fiscalização do Exército para comprar armas, criminosos ligados a facções do narcotráfico estão aproveitando para adquirir armamento pesado e revender para a bandidagem. É o que revelam as investigações feitas pela polícia. Segundo especialistas, os custos de uma arma no mercado paralelo chegam a ser até o triplo de um exemplar semelhante comprado com nota fiscal.
As facilidades não param por aí. Se antes a logística para trazer arsenais do Paraguai envolvia aeronaves e pagamento de propina a forças policiais, agora basta ir a uma loja e adquirir armas, munições e pólvora. Inclusive armamento pesado. Após as mudanças na legislação durante o governo Bolsonaro, um único criminoso pode adquirir, com um registro de caçador, 30 armas, sendo 15 de uso restrito, e 90 mil munições por ano.
Se o bandido tiver também a licença de atirador, consegue comprar mais 60 armas, 30 delas de uso restrito, e outras 180 mil munições. Se obtiver ainda o registro de colecionador, não terá limite de compra de armas, apenas a orientação de comprar só cinco de cada modelo.
O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), explica que o crime organizado tem usado laranjas com cadastro de CACs para a compra de arsenal “com bastante frequência”. Segundo ele, o subterfúgio é vantajoso não só do ponto de vista financeiro, mas pela redução dos riscos de trazer armamento de outros países pelo mercado ilegal.
“Um fuzil 556 no mercado nacional com nota fiscal gira em torno de R$ 15 mil. Eles estavam pagando de R$ 35 mil a até R$ 60 mil em um vindo do Paraguai. Infelizmente, essa redução das restrições acaba favorecendo também o crime, pela impossibilidade do Exército de fiscalizar caso por caso, se realmente são CACs”, afirmou Gakiya.
Uma operação da Polícia Civil de Itajaí, em Santa Catarina, prendeu neste mês três suspeitos de dois assaltos a banco na cidade catarinense. Os bandidos roubaram o total de R$ 230 mil. Um deles é CAC. Registradas em em seu nome, há três pistolas e um fuzil – armas usadas em ambos os crimes. Outro integrante do bando é membro de uma facção criminosa do estado.
Segundo o delegado Eduardo Ferraz, delegado da Divisão de Investigação Criminal de Itajaí, o criminoso com registro de CAC não tem antecedentes criminais nem passagem pela polícia. Embora seu registro tenha sido concedido de forma regular, a polícia suspeita de que ele seja um “laranja” da facção, estratégia adotada pelo crime organizado para se armar de forma legal. Além das armas usadas no roubo, ele já estava em processo de compra de mais uma carabina e um fuzil, encomendas da facção.
“Tem grupos criminosos usando essas pessoas sem nenhum tipo de passagem, e com dificuldades financeiras, para conseguir armas de forma regular. São pessoas com renda baixa e que não têm nada que as desabone”, afirmou Ferraz, lembrando que o suspeito em questão tem uma renda mensal de R$ 3,5 mil, incompatível com a compra de R$ 100 mil em armas.
Segundo Ferraz, as investigações apontaram que uma arma comprada ilegalmente no Paraguai chega a ser o triplo de uma obtida em loja.
PF alertou dos riscos da política pró-armas de Bolsonaro
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) busca ampliar agressivamente o direito a posse de armas no Brasil, documentos obtidos pela Reuters revelam uma importante fonte de resistência à sua agenda: a própria Polícia Federal.
Quase duas décadas depois de o Brasil aprovar uma lei histórica de controle de armas de fogo, Bolsonaro usou dezenas de decretos para enfraquecer essas restrições, transformando o direito de portar armas em um símbolo de seu movimento de ultradireita. Um amplo projeto de liberalização em discussão no Senado pode consagrar em lei seu esforço para tornar o Brasil um país armado como os Estados Unidos.
No entanto, documentos inéditos até agora mostram que a Polícia Federal há muito se opõe à visão do presidente, emitindo advertências severas sobre dois projetos de lei apoiados por Bolsonaro para enfraquecer o controle de armas, incluindo o que agora aguarda votação no Senado.
Em pelo menos oito posições institucionais formais, entregues ao Congresso de 2018 até o início deste ano, os policiais federais disseram que as propostas tornariam mais difícil garantir a segurança no país com mais homicídios em números absolutos do mundo.
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“Consideramos todas essas mudanças um retrocesso na política pública de controle de armas de fogo prevista na legislação atual”, escreveu a PF em dezembro de 2019 aos parlamentares depois que o Projeto de Lei 3723, o mais recente de autoria do Executivo para afrouxar o controle de armas, passou na Câmara dos Deputados.
Se aprovado pelos senadores, escreveu a polícia, o projeto “resultará, sem dúvida, no retorno da situação caótica no país de excessiva oferta de armas de fogo, inclusive ilegais, em circulação, podendo tornar muito piores os índices de criminalidade”.
Ainda assim, a PF acabou dando apoio qualificado –com “ressalvas” bem expressas– à medida apoiada pelo presidente. De acordo com uma autoridade sênior com conhecimento dos documentos, esse endosso condicional é um sinal da influência de Bolsonaro sobre uma força que, segundo críticos, ele povoa com aliados em postos-chave ao mesmo tempo em que deixa de lado vozes dissidentes.
CACs querem ocupar o Congresso
Com incentivo de Bolsonaro, os colecionadores de armas, atiradores e caçadores (CACs) se articulam para a partir de 2023 formar uma bancada no Congresso. Em todo o País, há 34 pré-candidaturas a deputado federal, senador e governador de nomes ligados à Associação Proarmas, a mais representativa da classe.
Para os legislativos estaduais e distrital, há mais 23 nomes sendo preparados. Nos planos do maior grupo armado do país também está a criação de um partido político. É a primeira vez que esse agrupamento, que supera todas as polícias militares em quantidade de membros e em arsenal, se organiza nos Estados e com o Palácio do Planalto para eleger representantes.
Bolsonaro, candidato à reeleição, tem recebido lideranças e pré-candidatos do movimento no Planalto para vídeos e fotos manifestando apoio a esses aliados. A estratégia conflita com o que o núcleo da campanha tem se queixado: falta de interlocução de Bolsonaro com apoiadores de outros segmentos, como o meio empresarial.
Graças à política pró-armamento do governo, o total de CACs registrado saltou de 117.467, em 2018, para 673.818 este ano. O montante supera todos os 406 mil policiais militares da ativa que atuam em todo o País e ainda é maior que o efetivo de cerca de 360 mil homens das Forças Armadas.
A movimentação política é vista com preocupação por policiais e por especialistas em segurança pública. Ao contrário da Polícia e das Forças Armadas, os CACs não possuem a hierarquia do meio militar e têm no presidente e no deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) suas maiores referências. Líder do Proarmas, o advogado Marcos Pollon anunciou sua candidatura à Câmara pelo Mato Grosso do Sul dias depois de ser recebido por Bolsonaro no Planalto.
Em vídeo publicado por Pollon no dia 6 de julho, três dias antes de uma grande manifestação dos CACs na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro acenou mais uma vez à classe. “A todos vocês CACs, um grande abraço, parabéns pelo momento, por essa oportunidade, pela iniciativa”, disse. “E parabéns também quem? Marcos Pollon. Parabéns, Marcos.”
O objetivo do movimento Proarmas é eleger candidatos ao Legislativo, em Brasília e nos Estados, para flexibilizar leis que tratam de armamentos. A atuação política, entretanto, já funciona há meses, sob a coordenação de Eduardo. O filho do presidente articulou armamentistas nos Estados para aprovar leis que facilitam o porte de arma aos CACs. Apesar de eles poderem circular armados, o deslocamento tem regras específicas e deve sempre ter um clube de tiro como destino. Com o direito ao porte, as restrições diminuiriam.
Uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo identificou 27 candidaturas à Câmara e ao Senado de armamentistas e políticos regionais que querem formar em Brasília a “bancada dos CACs”. Além desses, há outros nove políticos com mandato no Congresso que recebem oficialmente o apoio do Pró-Armas para disputas ao Senado a governos estaduais, com a condição de tratar a pauta armamentista com absoluta prioridade. Há ainda 23 candidatos às assembleias estaduais e distritais. Todos estão distribuídos por PL, PMN, Podemos, PP, PRTB, PSC, PTB, PTC e Republicanos, partidos que formam o Centrão.
A bancada que os CACs querem eleger no Congresso e nos Estados é formada por instrutores de tiro, donos de clubes, policiais e advogados.
Número de brasileiros armados aumentou seis vezes
Graças às políticas de Bolsonaro, o número de brasileiros que se registram para possuir armas aumentou seis vezes desde 2018, para quase 700 mil, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho.
Em discursos inflamados rumo à sua batalha pela reeleição em outubro, Bolsonaro tem pedido a seus apoiadores que se armem ou correrão o risco de serem “escravizados”. Leis duras sobre armas precisam ser derrubadas, diz ele, pois só ajudam os criminosos. Mas a Polícia Federal argumentou em seus briefings que mais armas beneficiariam os criminosos.
Partes do PL 3723 parecem ter sido redigidos “sem prever as consequências dessas descriminalizações para a delinquência geral e o crime organizado”, escreveram.
A posição da Polícia Federal é marcante no Brasil, onde muitos policiais simpatizam com Bolsonaro.
No entanto, os briefings ao Congresso, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram ampla antipatia em relação à agenda de armas de Bolsonaro. Cinco oficiais de alto escalão expressaram profundas preocupações à Reuters sobre o legado da política de armas do atual governo, mas disseram que as pressões políticas internas os impediam de se manifestar.
Com informações do O Globo e Folha de S. Paulo