O comportamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em live transmitida da quinta-feira (29), na qual pôs em dúvida a confiabilidade do sistema eletrônico de votação, tem elementos que podem ser enquadrados em crimes de responsabilidade, estabelecidos na lei que regulamenta o impeachment, segundo o professor de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) Roberto Dias.
De acordo com a reportagem do jornal Folha de S. Paulo, Bolsonaro trouxe na transmissão teorias que circulam há anos na internet e que já foram desmentidas anteriormente, como vídeos sobre o assunto.
Na opinião do professor, que é especialista em direito constitucional, um dos artigos que podem ter sido infringidos é o que trata da violação pelo presidente “de qualquer direito ou garantia individual”. O direito do cidadão ao voto, para o acadêmico, pode ser incluído dentro desse conceito.
“No fundo, ele está descredibilizando o voto, que é um direito fundamental. Quando ele fala que o voto é violado, é fraudado, no fundo, ele o que ele está fazendo é violar esse direito das pessoas. ‘Não façam isso, não votem, não acreditem no sistema eleitoral porque os votos não são reais’. Como o direito de voto é um direito fundamental, parece que é uma violação patente”.
Roberto Dias
Se o presidente da República defende que houve fraude nas eleições, diz o professor, “no fundo está violando a ideia de que as pessoas podem livremente exercer o seu direito de voto”.
Bolsonaro fala sobre voto impresso
Na transmissão, Bolsonaro também mencionou os protestos pelo voto impresso convocados pelos seus apoiadores para o próximo domingo (1º).
“Ele convoca a população para lutar a favor de uma causa que é ilegítima do ponto de vista constitucional. O Supremo [Tribunal Federal] já disse que é ilegítima. Então, é uma forma de subverter o sistema democrático por meio de suas entranhas, usando instrumentos democráticos, como o direito de manifestação”.
Roberto Dias
Outro item da Lei do Impeachment citado pelo professor é o que estabelece como crime de responsabilidade a “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
Esse artigo tem sido citado com frequência em outros pedidos de impeachment já enviados à Câmara. São mais de cem solicitações que aguardam análise do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que é quem tem a atribuição individual de decidir sobre dar ou não seguimento.
Entre as motivações dos pedidos de impeachment apresentados, estão, por exemplo, a participação em atos antidemocráticos e declarações sobre a pandemia do coronavírus. Opositores citaram a questão do decoro no chamado “superpedido de impeachment”, protocolado há um mês, que menciona mentiras proferidas por Bolsonaro.
Bolsonaro pode ter punição eleitoral
O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gustavo Binenbojm, especialista em direito constitucional e administrativo, diz que a eventual leviandade dos elementos que o presidente diz apontar como provas de fraude eleitoral não deve configurar por si só um crime de responsabilidade. Mas considera que o mandatário já infringiu essa legislação anteriormente em diferentes situações no mandato.
Binenbojm afirma que, dentro das regras eleitorais, “quem faz afirmações sobre fraudes eleitorais tem um certo ônus de provar”. “E isso pode ter consequências eleitorais”, afirma o professor, se referindo às leis que regulamentam as eleições e que preveem punições.
Para o acadêmico, a utilização nesta quinta-feira pelo presidente de veículos públicos, como a TV e canais oficiais na internet, tenderia mais para a discussão sobre probidade administrativa —não para um crime de responsabilidade.
“Ele teria que justificar para fins públicos [o uso da estrutura]. Ainda assim, me parece legítimo que ele queira discutir o sistema eleitoral. Há uma PEC [proposta de emenda à Constituição], com um relator favorável na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e ele está se pronunciando”. Gustavo Binenbojm
Astrólogo faz denúncia de fraude eleitoral
Bolsonaro citou na live um vídeo de denúncias sobre suposta fraude na eleição de 2014 protagonizado por Alexandre Chut, astrólogo que já disse fazer acupuntura em árvores. Chut, que se apresenta como acupunturista, psicólogo e ambientalista, aparece em vídeo de 2018 de Naomi Yamaguchi, suplente de deputada federal e irmã de Nise Yamaguchi, médica defensora da cloroquina. Embora faça denúncia sobre contagem de votos nas eleições no vídeo, Chut se dedica a atividades pouco relacionadas com a ciência política ou a estatística.
Ele ganhou notoriedade em 2012 ao declarar que fazia acupuntura em árvores—espetava pregos (em vez de agulhas) nas junções dos troncos com os galhos. “Os vegetais que recebem a acupuntura apresentam crescimento mais acentuado, folhas mais robustas e raízes mais ramificadas”, afirmou ele à revista Época.
Em seu site, ele lista suas “previsões concretizadas com Matemática Celeste”, entre elas as “Mobilizações da População Brasileira (2013)”, saúde de Pelé, Milton Nascimento, Fidel Castro, Lula, Edson Celulari e José Serra, atentado em Boston, em 2013, e a data da prisão de Eduardo Cunha, em 2016.
O nome do vídeo com a participação de Chut é “Prova das fraudes nas urnas! Exclusivo e Urgente”, e foi postado em 2018 na página de Naomi Yamaguchi, então eleita como suplente no cargo de deputada federal pelo PSL, partido pelo qual Bolsonaro concorria à Presidência.
Teorias desmentidas
Bolsonaro também apresentou vídeos da internet e teorias já desmentidas que circulam na internet, com cálculos errados, como supostas provas de fraude nas eleições. Admitiu, porém, que na verdade não tinha provas, apenas “vários indícios”. Ao fazer acusações de fraudes, sem ter provas, mesmo dizendo que tem, Bolsonaro reforça a ideia de que sua defesa do voto impresso é um meio de gerar desconfiança e um plano B para o caso de perder as eleições.
Apesar de diferentes especialistas na área de segurança e computação apontarem que o voto impresso aumentaria a segurança e transparência do sistema eleitoral brasileiro, as reiteradas acusações de fraude do presidente demonstram que sua preocupação, ao exigir o voto impresso, está mais em gerar desconfiança no processo eleitoral do que em melhorar a segurança das urnas efetivamente.
Um exemplo disso é que o presidente diz, desde março de 2020, que tem provas de que as eleições foram fraudadas. No entanto, durante a live em que apresentaria provas, Bolsonaro disse que tinha apenas indícios. “Um crime se desvenda com vários indícios. Vamos apresentar vários indícios aqui”, disse.
Na primeira vez em que disse que apresentaria provas de fraudes o discurso era outro: “Eu acredito, pelas provas que eu tenho nas minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu fui eleito em primeiro turno”, afirmou Bolsonaro na ocasião. “Nós temos não apenas uma palavra, nós temos comprovado. Nós temos de aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos”, disse.
Outro exemplo é que boa parte da argumentação do presidente é centrada na fase da apuração dos votos, fase que não seria alterada com o voto impresso. Diferentemente do que Bolsonaro diz, a contagem das eleições hoje não é feita secretamente. O momento da totalização dos votos já tem inclusive um recurso impresso para verificação: o boletim da urna.
A implementação do comprovante de voto impresso, de cada eleitor, não alteraria a segurança do momento da transmissão e totalização dos votos. A proposta impactaria o momento do registro do voto, quando o eleitor vota na urna. Além disso, ele não se restringe a apontar possíveis melhorias da urna com dados corretos, mas se utiliza teorias mirabolantes e dados mentirosos.
STF e TSE consideram live de Bolsonaro ‘patética’
Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) classificaram, nos bastidores, como “patética” a live de Bolsonaro. Para magistrados, o presidente revelou-se desesperado diante da perda de popularidade que vem sofrendo e por ser alvo de denúncias de suspeitas de irregularidades e corrupção na compra de vacinas.
Chamou a atenção de integrantes das cortes superiores a participação na live do ministro da Justiça, Anderson Torres. O fato de o ministro ter sob seu guarda-chuva a Polícia Federal (PF) e ter estado ao lado de Bolsonaro em evento para divulgar supostas fraudes nas eleições foi avaliado como um ataque ao pleito. Magistrados estudavam na noite desta quinta se reagiriam à participação específica de Torres.
Diante das declarações de Bolsonaro, o TSE divulgou uma série de checagens para contestar quase duas dezenas de alegações feitas pelo presidente. Ministros do STF e do TSE haviam combinado de só se manifestar publicamente caso Bolsonaro apresentasse alguma evidência ou ataque concreto que fugisse a teorias da conspiração.
A constatação, no entanto, foi a de que o presidente propagou teses velhas. O presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que já foi chamado de “imbecil” por Bolsonaro, só viu o final da live, mas ao longo dela recebeu avisos de que Bolsonaro estava propagando “fake news”. A live de Bolsonaro ocorre numa esteira de rusgas entre o presidente e o Judiciário.
Bolsonaro acusa STF
Na quinta, antes da live, Bolsonaro afirmou que o STF cometeu crime ao permitir que prefeitos e governadores tivessem autonomia para aplicar medidas restritivas contra a pandemia da covid-19.
“O Supremo, na verdade, cometeu um crime ao dizer que prefeitos e governadores de forma indiscriminada poderiam, simplesmente suprimir toda e qualquer direito previsto no inciso [do artigo] 5º da Constituição, inclusive o ‘ir e vir”‘.
Jair Bolsonaro
A fala foi divulgada por um canal bolsonarista no YouTube. A declaração de Bolsonaro foi uma reação à mensagem postada em uma rede social do STF na quarta-feira (28). No texto, a corte reafirma que não impediu o governo federal de agir no enfrentamento da covid-19. “O STF não proibiu o governo federal de agir na pandemia! Uma mentira contada mil vezes não vira verdade!”, afirmou no Twitter.
Embora tenha partido para cima do tribunal, ministros do Supremo decidiram não responder ao ataque sob a mesma alegação da ausência de reação à live: de que não adianta o Judiciário ficar batendo boca com o mandatário, sob pena de inflar ainda mais as alegações de Bolsonaro.
O presidente do STF, Luiz Fux, pretende responder a ameaças golpistas no discurso que fará na semana que vem na reabertura dos trabalhos do Judiciário. O magistrado vai pregar que cada ator político atue dentro dos limites institucionais, sem extrapolá-los, para que a democracia fique firme. A resposta é classificada como tardia por ala do Supremo.
Desespero e disposição para tumultuar
Parlamentares e ministros do STF e TSE avaliam que Jair Bolsonaro deu sinais de desespero na live em que prometia apresentar provas de fraude nas urnas eletrônicas, em meio a pesquisas que mostram que ele não seria reeleito. A leitura é que foi a maior demonstração de sua disposição de tumultuar 2022.
Ele não mostrou nenhum elemento de fato para corroborar a tese que vem levantando há três anos. Na visão de líderes do Congresso e integrantes do STF e do TSE, a transmissão de Bolsonaro foi um fracasso.
A avaliação de parlamentares é a de que as falas do presidente não vão alterar a tendência da comissão da Câmara de rejeitar a proposta de voto impresso.
O presidente do PSD, Gilberto Kassab, disse ao jornal Folha de S. Paulo que Bolsonaro tenta gerar desde já confusão e insegurança sobre os resultados das eleições de 2022 e que a população precisa ficar atenta.
“É lamentável ver o presidente da República trazer uma denúncia dizendo que não tem provas sobre algo tão sério”, disse Kassab, que tenta tirar do papel a candidatura de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) a presidente.
Com informações do jornal Folha de S. Paulo