Enquanto o Brasil amarga uma pandemia com mais de 250 mil mortos e um plano de vacinação lento e desprovido do seu principal elemento, a vacina, o Chile se torna o 7º país do mundo com a maior taxa de imunização. Os dois cenários possuem a mesma causa, as escolhas realizadas pelos presidentes e gestores dos dois países.
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Sebastián Piñera, chefe de estado do Chile, iniciou negociações e fechou contratos com quatro laboratórios no início do segundo trimestre de 2020. Ele também acompanha de perto os estudos de outras duas fabricantes de vacina.
Enquanto isso, no Brasil, Jair Bolsonaro (sem partido) gastou R$ 70 milhões na produção de cloroquina, remédio sem eficácia alguma no tratamento da Covid-19. Além disso, não teve a iniciativa de buscar imunizantes previamente. No fim da fila do recebimento de novas doses, o Brasil assiste sua campanha de vacinação ser interrompida em diversos estados com menos de 4% da população vacinada.
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O investimento do Chile
No país sul-americano, o governo colhe os frutos de ações iniciadas ainda em maio do ano passado. Naquele mês, o presidente Piñera determinou ao advogado Rodrigo Yañez, subsecretário de Relações Econômicas Internacionais, que se dedicasse exclusivamente a negociar e fechar acordos com os laboratórios que já haviam iniciado pesquisas da vacina.
Este trabalho já resultou em mais de 3 milhões de pessoas imunizadas em 22 dias. O plano de vacinação do país foi iniciado com a chegada de 20 mil doses da vacina do laboratório Pfizer. Estas doses foram aplicadas exclusivamente em profissionais da saúde que atuam nos centros de atendimento com pacientes em estado crítico. Desta vacina, o Chile irá receber mais 10 milhões de doses nos próximos meses.
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A Sinovac, que utiliza a mesma fórmula utilizada pelo Instituto Butantã, já enviou 4 milhões de doses para o Chile e, ao longo dos próximos três anos, serão 60 milhões de vacinas entregues. Além destas, outras cinco milhões de doses da AstraZeneca também já foram compradas pelo país vizinho.
Brasil na contramão
Especialistas ouvidos pelo jornal O Globo e pela rede de notícias BBC Brasil são unânimes ao apontar a demora do governo brasileiro como principal causa para a nação estar tão longe do fim da pandemia. Segundo eles, mesmo quando se movimentou para conseguir os inoculantes, o governo errou ao reduzir suas opções a um laboratório, o AstraZeneca, que havia feito acordo com a Fiocruz.
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A epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Plano Nacional de Imunização (PNI), afirmou que graças ao sistema público de saúde, o país conseguiu iniciar a imunização.
“A AstraZeneca ainda não conseguiu entregar vacinas. Felizmente, temos o laboratório público Butantan, que fez um acordo (com a chinesa Sinovac) à revelia do próprio Ministério da Saúde. Do contrário, não teríamos doses disponíveis no Brasil”, disse Carla
A falta de clareza em relação aos grupos prioritários também contribuiu para que inúmeros problemas acontecessem durante a primeira fase da vacinação. Em diversas cidades, por não terem sido estabelecidas critérios dentro dos grupos prioritários, profissionais como podólogos e dermatologistas foram vacinados antes de pessoas com mais de 85 anos. E o desperdício de doses por falta de capacitação e orientação aos profissionais fecha a tríade da gestão bolsonarista da imunização no país.
Gado bem cuidado
Já um grupo que não precisa se procupar com falta de vacinas no Brasil é o gado. Enquanto apenas dois laboratórios se dedicam à produção dos imunizantes do coronavírus, trinta produzem doses veterinárias. E, ao contrário do que ocorre com as vacinas de humanos, 90% das de uso bovino são produzidas inteiramente no Brasil, proporcionando autosuficiência ao setor e garantindo a qualidade da carne e outros derivados.
Tão numerosos quanto a população de humanos, os bois brasileiros mantém a sua própria indústria de vacinas. Incentivadas pela campanha de gestões anteriores do Governo Federal contra a febre aftosa, milhões em recursos foram disponibilizados para fomentar a produção, que já resultou em mais de 6 bilhões de doses para esta doença específica.
As fábricas veterinárias possuem duas vantagens em relação ao Butantã e a Fiocruz. A primeira delas é que o órgão fiscalizador de suas instalações é o Ministério da Agricultura, bem menos rígido que a Anvisa, o que barateia os custos de produção. A segunda é que o mercado que adquire imunizantes para bois, suínos e aves é muito mais amplo e lucrativo que o governo federal, principal comprador das vacinas de humanos no país.
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Em entrevista à BBC News Brasil, o fundador e primeiro presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto, explicou que foi realizado um maciço investimento na industria de vacinas para humanos em 1980. Porém, com a abertura comercial do então presidente Fernando Collor, as indústrias nacionais não resistiram e a China e a Índia passaram a dominar este mercado no Brasil.
“Essa abertura da economia no governo Collor foi feita sem cuidado, sem verificar como os diferentes segmentos seriam afetados. Na indústria farmacêutica, o que fizemos foi secar a capacidade de produção nacional e passar a importar tudo através das multinacionais”, afirmou Vecina