Em Brasília, a semana aguarda uma chicana de ações judiciais impetradas por bolsonaristas para adiar o início dos trabalhos, no Senado Federal, da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as medidas do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) para o enfrentamento à pandemia da Covid-19. A CPI da Pandemia também vai investigar a aplicação de recursos federais em estados, Distrito Federal e municípios para combate ao coronavírus.
O principal alvo da estratégia governista é o senador Renan Calheiros (MDB-AL), indicado pelo MDB como relator da CPI da Pandemia. O presidente da República considera a indicação do alagoano como uma vingança do MDB pela derrota sofrida pelos candidatos do Planalto às presidências da Câmara e do Senado.
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Bolsonaristas recorrem à Justiça
No dia 19, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP) já havia ingressado com ação na Justiça de Brasília contra a indicação de Renan. Ela anunciou que outros parlamentares da tropa de choque de Bolsonaro deverão também entrar com ações.
Na sua ação, Zambelli argumenta que Renan já demonstrou parcialidade, pois “a mácula em sua personalidade resta inconteste”. Os bolsonaristas estudam argumentar, nas outras ações, que o senador está impedido para a função porque Renan Filho é governador de Alagoas e seu estado poderá ser alvo de investigação na CPI da Pandemia.
Mas o comando da CPI da Pandemia não acredita que as ações na Justiça dos bolsonaristas impeçam a instalação da comissão. Advogados do MDB já foram acionados para o caso de a tropa de choque do governo obter medidas liminares. Na avaliação desses advogados, seriam medidas de primeira instância derrubáveis nas instâncias superiores do judiciário.
Para fechar brechas de questionamento jurídico, Renan, provável relator da CPI, vai se declarar impedido de eventual investigação do governo de Alagoas, e o presidente Omar Aziz vai designar outro senado para a tarefa.
Vingança pela eleição das presidências do Legislativo
Bolsonaro apoiou a eleição do atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em fevereiro, contra o presidente nacional do MDB, deputado Baleia Rossi (SP). No Senado, ajudou Rodrigo Pacheco (DEM-MG) a derrotar a candidata emedebista, Simone Tebet (MS).
O líder do MDB no Senado, Eduardo Braga (AM), chegou a ensaiar a candidatura, mas foi obrigado a desistir diante da articulação do governo. Agora, Braga se autoindicou integrante da CPI e negociou com o PSD e a oposição a nomeação de Renan Calheiros como relator. Em troca, o senador Omar Aziz (PSD-AM) ficará com a presidência da comissão.
O Planalto acredita que Renan tentará levar a CPI a recomendar o impeachment do presidente da República. O senador já disse que pretende levantar quantas mortes “poderiam ser evitadas” se o governo tivesse atuado melhor no combate à pandemia do coronavírus.
Publicamente, os caciques emedebistas evitam falar em revanchismo. Reservadamente, reconhecem que a participação ativa dentro da comissão é uma oportunidade para voltar a se impor no cenário político.
Apesar das limitações impostas pela pandemia à estrutura da comissão, é esperado que bolsonaristas tentem apelar para hostilidades nas reuniões semipresenciais e nas redes sociais.
Renan e bolsonaristas: rusgas antigas
A relação estremecida entre Renan e o governo Bolsonaro não é de hoje. Em fevereiro de 2019, o Palácio do Planalto impôs grande derrota ao ao senador. O então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), atuou abertamente para impedir que o emedebista fosse eleito pela quinta vez presidente do Senado.
Com a vitória de Davi Alcolumbre (DEM-AP), o MDB ficou apenas com a 2ª secretaria da Mesa Diretora e nenhuma suplência. Na atual legislatura, com a derrota de Simone Tebet, o MDB ficou com a 1ª vice-presidência, apesar de ser a maior bancada do Senado. Para rifar a emedebista, o Planalto negociou espaços no governo para outros integrantes do partido.
Publicamente, Renan adota tom neutro, afirmando que levará em conta apenas “provas indiscutíveis” e “insofismáveis”. Mesmo assim, aproveita para enviar recados:
“O governo devia estar aproveitando esse tempo para se preparar para, na Comissão Parlamentar de Inquérito, demonstrar definitivamente que não errou e que, portanto, não tem responsabilidade. Se isso acontecer será melhor, melhor que aconteça, do que essa guerra sem sentido na rede social, ou declarações do filho do presidente, Flávio Bolsonaro, de que ainda aguarda uma decisão judicial para impedir que eu participe da Comissão Parlamentar de Inquérito e seja o seu relator.”
Renan Calheiros
Renan, Lula e as Eleições de 2022
Renan Calheiros tem criticado abertamente a atuação do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. “O Brasil inteiro acompanhou o Pazuello. Foi um desempenho horroroso. Vamos apurar cada fase da sua presença”, declarou em entrevista à Globo News na última quinta-feira, 22.
Bolsonaro vê em Renan mais um aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem pode ajudar numa aliança entre PT e MDB em 2022. Há cerca de 15 dias, Renan e Lula conversaram ao telefone e ficaram de se encontrar. O petista realmente quer o apoio do MDB e planeja viajar a Brasília para se encontrar com políticos que possam se aliar ao PT.
Bolsonaro com medo de repeteco de Collor
O maior pesadelo de Bolsonaro, de acordo com comentários feitos a aliados, é de que a CPI da Pandemia sirva de base para um futuro processo de impeachment. Como o que ocorreu com o ex-presidente Fernando Collor de Mello (AL), hoje senador pelo PROS.
O relatório final daquela CPI, que apurou denúncias de corrupção no governo, foi fechado no dia 24 de agosto de 1992 e, já no dia 1° de setembro, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apresentaram o pedido de abertura de processo de impeachment. Baseado nas conclusões da CPI, o pedido foi aprovado e Collor deixou o cargo.
Acordo pela oposição
A regra da proporcionalidade das bancadas, que precisa ser seguida na composição das comissões, acabou privilegiando o grupo que se diz “independente”, mas que é crítico ao governo. Uma articulação do MDB foi decisiva para isso.
Normalmente a presidência das CPIs cabe ao autor do requerimento de sua criação. No caso, seria Randolfe Rodrigues (Rede-AP), ficando para o MDB, que detém a maior bancada, a relatoria.
Para afastar Randolfe, que faz oposição aberta ao Planalto, os governistas argumentaram que a Rede só tem um senador e defenderam que o posto coubesse ao PSD, segunda maior bancada na Casa. Com isso, o governo visava atrair indicações de aliados dentro do PSD para a comissão.
O líder emedebista, Eduardo Braga, procurou o líder do PSD, Otto Alencar (BA), e ofereceu um acordo: o partido convenceria Randolfe a desistir da presidência da comissão e apoiaria a eleição de um nome do PSD, desde que fosse independente do governo e que apoiasse Renan para relator.
Aliado do PT na Bahia, Otto aceitou. A presidência ficou com Omar Aziz, do PSD do Amazonas, estado mais atingido pela pandemia. Um irmão de Aziz, inclusive, morreu devido à Covid-19. Pelo Regimento interno do Senado, cabe ao presidente da CPI nomear o relator. Omar Aziz declarou em entrevista ao UOL que Renan será o escolhido.
Com isso, formou-se uma aliança entre independentes e oposicionistas que pode garantir seis prováveis votos contra o governo nas sessões: Renan, Eduardo Braga, Otto Alencar, Randolfe (que ficou como vice-presidente), Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Humberto Costa (PT-PE). São quatro os governistas entre os titulares da comissão: Ciro Nogueira (PP-PI, Marcos Rogério (DEM-RO), Jorginho Mello (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE). O presidente, Omar Aziz, só vota se houver empate.
Cargos e a cabeça de Pazuello
Para evitar que o presidente da República fique à deriva em meio ao fogo cruzado, os estrategistas do Planalto já começam a trabalhar alternativas. A primeira aposta é no chamado pragmatismo do velho MDB. Ou seja, se a situação apertar, oferecer espaços no governo a emedebistas dispostos a neutralizar Renan Calheiros e Eduardo Braga. O líder seria mais sensível a pressões de outros membros da bancada.
O próprio Bolsonaro chegou a telefonar para o governador de Alagoas, Renan Filho, a fim de estabelecer uma ponte de diálogo. Governadores, como se sabe, precisam de verbas do governo federal.
Outra alternativa debatida entre bolsonaristas é a “oferta de cabeças”. De acordo com comentários de aliados no Senado, a atribuição ou não de responsabilidades ao chefe do Executivo federal pelos erros cometidos durante a pandemia não seria uma “questão técnica”, e sim uma “demanda política”. Por esse motivo, arquitetam que talvez se possa fechar um acordo em que alguém do governo “pague o pato” e livre o presidente de responsabilidade.
Embora não tenha um cargo a ser oferecido, o ex-ministro Eduardo Pazuello é um dos cotados. Já é certo que ele será chamado a depor na CPI. O ex-chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten, deu entrevista à revista Veja em que culpou o general pelo atraso na compra de vacinas.
A cúpula da CPI avalia que a entrevista do ex-assessor palaciano trouxe elementos bastantes graves. Os senadores questionam, por exemplo, a razão de um secretário de comunicação ter pedido apoio ao ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e ao procurador-geral da República, Augusto Aras, para fechar contrato milionário para compra de vacinas. Esse seria um papel reservado ao presidente da República ou ao ministro da Saúde.
A estratégia bolsonarista seria semelhante ao que o governo tentou fazer no caso do assessor Filipe G. Martins, que provocou ira dentro do Congresso Nacional ao fazer um gesto obsceno para as câmeras sentado atrás do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, durante depoimento do então chanceler Ernesto Araújo.
Na ocasião, Bolsonaro “ofereceu” a cabeça do subordinado na tentativa de dar sobrevida ao ministro, que era odiado entre os senadores. Os parlamentares, no entanto, liderados pelo próprio Rodrigo Pacheco, não aceitaram a barganha. O chanceler acabou demitido.
Com informações do UOL