E-mails mostram que o governo Bolsonaro negociou oficialmente venda de vacinas com representantes da Davati Medical Supply. Um representante da empresa afirmou que recebeu pedido de propina de US$ 1 por dose em troca de assinar contrato. As mensagens da negociação foram trocadas entre Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério da Saúde, Herman Cardenas, que aparece como CEO da empresa, e Cristiano Alberto Carvalho, que se apresenta como procurador dela.
O próprio Dias envia um e-mail em que menciona uma reunião ocorrida sobre o tema. Ele é apontado como o autor do pedido de propina. Sua exoneração do Ministério da Saúde foi anunciada na noite de terça (29) após as revelações do jornal.
Um dos e-mails foi trocado às 8h50 do dia 26 de fevereiro deste ano, por meio do endereço funcional de Dias, “[email protected]”, e “[email protected]” —”dlog” é como o departamento de logística é chamado. Na conversa, Cardenas informa da oferta de 400 milhões de doses da vacina Astrazeneca, citando Luiz Paulo Dominguetti Pereira como representante da empresa. “Fico no aguardo para ajudar a obter vacinas para seu país”, diz.
Em entrevista à Folha, Dominguetti disse que jantou na noite anterior àquela manhã com Roberto Dias no restaurante Vasto, em Brasília, quando ouviu, segundo ele, o pedido de propina de US$ 1 por dose de vacina negociada.
“Ele me disse que não avançava dentro do ministério se a gente não compusesse com o grupo, que existe um grupo que só trabalhava dentro do ministério, se a gente conseguisse algo a mais tinha que majorar o valor da vacina, que a vacina teria que ter um valor diferente do que a proposta que a gente estava propondo”.
Luiz Paulo Dominguetti
O contrato não foi assinado, segundo ele, porque a empresa se recusou a pagar a propina.
Governo discute compra de vacina
Outra mensagem reforça a versão de Dominguetti. Segundo ele, uma agenda oficial foi marcada na tarde do dia 26 no Ministério da Saúde com Dias para discutir a compra. O e-mail foi enviado pelo departamento de Logística às 10h50, pouco depois do e-mail com a oferta feita, agendando o encontro.
“Este ministério manifesta total interesse na aquisição das vacinas desde que atendidos todos os requisitos exigidos. Para tanto, gostaríamos de verificar a possibilidade de agendar uma reunião hoje às 15h, no Departamento de Logística em Saúde”.
Ministério da Saúde
Dominguetti deu detalhes dessa reunião. “Ele [Dias] me disse: ‘Fica numa sala ali’. E me colocou numa sala do lado ali. Ele me falou que tinha uma reunião. Disso, eu recebi uma ligação perguntando se ia ter o acerto. Aí eu falei que não, que não tinha como.”
“Isso, dentro do ministério. Aí me chamaram, disseram que ia entrar em contato com a Davati para tentar fazer a vacina e depois nunca mais. Aí depois nós tentamos por outras vias, tentamos conversar com o Élcio Franco, explicamos para ele a situação também, não adiantou nada. Ninguém queria vacina”. Luiz Paulo Dominguetti
Dias foi indicado ao cargo pelo deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo de Jair Bolsonaro na Câmara. Barros nega a indicação.
O próprio Dias envia um e-mail aos representantes no dia 1 de março. Na mensagem, ele diz que o governo brasileiro agradece a atenção da empresa em relação à necessidade do Brasil em obter vacinas. Mencionou uma reunião anterior entre eles e solicitou um documento que vincule a Davati como representante da Astrazeneca no Brasil. Ele então acrescentou que, a partir disso, poderiam seguir adiante já que a proposta comercial da empresa parecia boa em relação a outras.
No dia 3 de março, Cristiano Alberto Carvalho, procurador da empresa, informou que o documento solicitado já foi enviado a Dias e seu então assessor, Marcelo Blanco. Dias não se pronunciou sobre o assunto. Dominguetti deve depor nesta sexta à CPI da Pandemia, que decidiu convocá-lo após as denúncias feitas por ele.
Irmãos Miranda são estopim do escândalo
A suspeita sobre a compra de vacinas veio à tona em torno da compra da vacina indiana Covaxin, com o depoimento sigiloso do servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda ao Ministério Público Federal (MPF), que relatou pressão “atípica” para liberar a importação da Covaxin.
Desde então, o caso virou prioridade da CPI da Pandemia no Senado. A comissão suspeita do contrato para a aquisição da imunização, por ter sido fechado em tempo recorde, em um momento em que o imunizante ainda não tinha tido todos os dados divulgados, e prever o maior valor por dose, em torno de R$ 80 (ou US$ 15 a dose).
Meses antes, o ministério já tinha negado propostas de vacinas mais baratas do que a Covaxin e já aprovadas em outros países, como a Pfizer (que custava US$ 10).
A crise chegou ao Palácio do Planalto após o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), irmão do servidor da Saúde, relatar que o presidente havia sido alertado por eles em março sobre as irregularidades. Bolsonaro teria respondido, segundo o parlamentar, que iria acionar a Polícia Federal para que abrisse uma investigação.
A CPI, no entanto, averiguou e constatou que não houve solicitações nesse sentido para a PF. Ao se manifestar sobre o assunto, Bolsonaro primeiro disse que a Polícia Federal agora vai abrir inquérito para apurar as suspeitas e depois afirmou que não tem “como saber o que acontece nos ministérios”.
Governo suspende contrato com Precisa
Na terça (29), o Ministério da Saúde decidiu suspender o contrato com a Precisa Medicamentos para obter 20 milhões de doses da Covaxin. Segundo membros da pasta, a decisão atual é pela suspensão até que haja novo parecer sobre o caso. A pasta, porém, já avalia a possibilidade de cancelar o contrato.
Já o advogado do deputado Ricardo Barros atuou como representante legal da vacina chinesa Convidecia no Brasil, participando inclusive de reunião com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Sócio do genro de Barros até março deste ano, o advogado Flávio Pansieri participou de reunião com a Anvisa no último dia 30 de abril. Segundo o site da agência, a pauta da reunião referia-se às “atualizações sobre a desenvolvimento da vacina do IVB [Instituto Vital Brazil] & Belcher & CanSinoBio a ser submetida a uso emergencial para a Anvisa”.
Integrantes da CPI da Pandemia querem apurar a negociação da Convidecia com o Ministério da Saúde. A empresa Belcher Farmacêutica, com sede em Maringá (PR), atuou como representante no país do laboratório CanSino Biologics no Brasil, responsável pelo imunizante.
Barros nega aquisição de vacinas superfaturadas
No último domingo (27), Barros divulgou nota por ter sido citado pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) em depoimento à CPI da Pandemia como parlamentar que atuou em favor da aquisição de vacinas superfaturadas. Para se defender, o líder do governo apresentou a íntegra da defesa preliminar enviada à Justiça Federal. O documento é assinado por Pansieri.
O advogado também assumiu a defesa de Barros no Supremo Tribunal Federal (STF), após o deputado ter sido delatado por executivos da construtora Galvão Engenharia.
Além de atuar na defesa de Barros, Pansieri acompanhou o líder do governo durante encontro com o presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto no dia 24 de fevereiro, durante a posse do deputado do centrão João Roma (Republicanos-BA) como ministro da Cidadania.
Com informações do jornal Folha de S. Paulo