
O especialista no processo de desenvolvimento recente da República Popular da China, Elias Jabbour, foi o convidado do segundo debate da série Revolução Brasileira no século 21, que aborda o tema a partir da concepção do historiador brasileiro Caio Prado Júnior. Em live realizada nesta quarta-feira (31), que contou com a participação do presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB), Carlos Siqueira, e do presidente do Instituto Pensar e membro do Diretório Nacional do PSB, Domingos Leonelli, e a mediação do socialista James Lewis, Jabbour afirmou que a reindustrialização brasileira passa por acordos com o gigante asiático.
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Ao longo de mais de uma hora de bate-papo, Jabbour, que é graduado, mestre e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), abordou temas relacionados às teses apresentadas na Autorreforma do PSB.
Reindustrialização brasileira para o século 21
Sobre um programa de desenvolvimento para o Brasil, o geógrafo defende, primeiro, formar uma outra maioria política com partidos progressistasーPSB, PCdoB, PT, PDT e PSOL, entre outros ーpara superar a ordem atual. Na visão dele, essa coalizão progressista deveria pactuar um acordo político, geopolítico e econômico com a China para importar bens públicos.
“A China, hoje, é uma grande exportadora de bens públicos: trens de alta velocidade, portos, hospitais, estradas. Em grande medida, tudo que nós precisamos os chineses podem nos exportar. O que nós deveríamos fazer é criar condições no Brasil de receber esse tipo de investimento que os chineses podem fazer aqui e jogar geopoliticamente.”
Elias Jabbour
Exemplo do Irã e da Argentina
Segundo Jabbour, um eventual acordo entre Brasil e China poderia ter como exemplo a experiência do Irã e da Argentina. O país do Oriente Médio fechou um acordo com os chineses de que em 25 anos receberá U$ 500 trilhões em investimentos. Ao fim desse período, os iranianos serão um país reindustrializado e interligado por trens de alta velocidade. Só o metrô da capital Teerã, por exemplo, terá 200 km de extensão.
A vizinha Argentina também está fechando um grande acordo com o governo chinês nos mesmos moldes do acordo firmado com os iranianos. Trata-se, explica o professor, de um pacto comercial, político e geopolítico no qual esses países recebem investimentos e promovem a própria reindustrialização.
Revolução brasileira segundo Caio Prado Júnior
A respeito da obra do historiador Caio Prado Júnior, ponto de partida do debate, Jabbour avalia que o intelectual marxista demonstra a capacidade de procrastinar das elites brasileiras, o que faz com que nossas transições sejam lentas, graduais e seguras.
“Por exemplo, a transição entre o início da pressão que a Inglaterra faz para o Brasil liberte os escravos até que o Brasil liberte os escravos, de fato, demorou mais de 70 anos e entre atos como a Lei dos Sexagenários e a Lei do Ventre Livre. Ou seja, a demonstração da capacidade das classes dominantes brasileiras ditarem o ritmo das transições brasileiras.”
Elias Jabbour
Jabbour avalia que a burguesia brasileira tem se mostrado amplamente incapaz de levar adiante um projeto modernizante para o país. Essa tarefa histórica, comenta, acaba recaindo sobre os ombros da esquerda. Para ele, não existe mais uma burguesia nacional com interesse em fazer o país crescer economicamente, gerar emprego de qualidade e reposicionar o Brasil no mercado internacional exportando manufaturados.
“A burguesia brasileira hoje é amplamente financeirizada. Como paralelo histórico eu sempre tenho dito nas minhas apresentações que onde as burguesias nacionais são incapazes de um projeto de desenvolvimento, os socialistas e os comunistas foram obrigados a tomar para si essas tarefas.”
Exemplos históricos: Rússia e China
O professor relembra que na Rússia pré-Revolução de 1917, o social-democrata e último primeiro-ministro do Governo Provisório Russo, Alexander Kerensky, foi incapaz de levar a paz e a modernização capitalista àquele país. Abriu caminho para os bolcheviques deflagrarem o movimento revolucionário e criar a hoje extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Na China ocorreu um processo similar ao soviético. O liberal Chiang Kai-shek foi incapaz de levar adiante as tarefas básicas de uma revolução burguesa e preferiu se aliar aos Estados Unidos da América (EUA). O resultado foi que o Partido Comunista da China tomou o lugar histórico que seria da burguesia.
Para Jabbour, a revolução brasileira passa por um processo de reindustrialização do Brasil, com a formação de um novo proletariado urbano ー que a direita nacional tem se mostrado incapaz de tocar adiante ー e um processo de modernização baseado em planejamento de longo prazo.
Teoria do Projetamento de Ignácio Rangel
Jabbour recordou que iniciou a pesquisa sobre a China motivado pelo interesse em descobrir se o socialismo, sob o ponto de vista econômico, era possível de ser aplicado. Desde 1996 ele escreve sobre o tema. Àquela época, a experiência soviética já havia chegado ao fim, mas o país asiático, a despeito de todas as contradições, persistiu no modo de produção socialista.
A partir do pensamento de Ignácio Rangel, descreve o professor, ele constatou que, na China, o desenvolvimento ocorria fora do que as teorias econômicas previam e havia novos elementos. Ele cita que em 2008, em decorrência da crise financeira, o gigante comunista lançou um pacote de US$ 690 bilhões de investimento. Essas medidas foram executadas por 96 grandes conglomerados empresariais estatais ー cada um deles do porte da Petrobras ー com a participação de 30 bancos estatais de desenvolvimento. A partir daí Jabbour começou a estudar novamente as políticas industriais chinesas do século 21.
Na pesquisa, o geógrafo constatou que, em 2006, a China lançou um ambicioso programa de marcas próprias que marcou o desacoplamento tecnológico dos EUA e do Japão e o surgimento de tecnologias de ponta como o 5G, a Inteligência Artificial e o Big Data.
“Eu percebi que a China, ao pegar essas plataformas tecnológicas novas a partir das suas estatais, passou a aplicar isso tudo à economia real e a partir disso elevou-se a capacidade de planificar a economia.”
Economia planejada para prever o futuro
Quando a China conseguiu elevar a capacidade de planejar a própria economia, duas ocorrências se tornam muito claras. A primeira foi a capacidade de previsão de futuro em um ambiente econômico muito instável do ponto de vista internacional.
“A financeirização aumenta a instabilidade financeira econômica do mundo e as crises econômicas são cada vez mais curtas entre um período e outro. A China consegue criar condições de previsibilidade muito grandes para enfrentar essas instabilidades internacionais.”
A segunda ocorrência, na análise do professor, é a enorme capacidade chinesa de intervir sobre o território, como nem a URSS no seu tempo mais duro foi capaz de fazer. Ele explica que quando o domínio do homem sobre a natureza é ampliado como no caso da China, não é mais possível analisar esse país a partir de marcos conceituais criados há 40 anos, 50 anos. Surgem novos desafios, novas necessidades e novas regularidades a serem descobertas e classificadas.
Economia chinesa x economia brasileira
Jabbour comenta que o projetamento adotado pela China, baseado na capacidade de intervenção de Estado na economia, faz com que a chamada lei do valor perca a mobilidade e permita ao poder estatal realizar grandes projetos de longo prazo. Já na economia como a brasileira, essa a lei do valor age livremente porque o Estado está fora da economia.
“É teto de gastos, a política fiscal é criminalizada. Então fica muito a cargo do mercado. Quando deixa a cargo do mercado, as coisas para o longo prazo são substituídas pelo curto prazo. Já a China supera essa lei do valor porque o Estado é o ente que tem a primazia do investimento e da execução. O setor privado da economia acaba sendo o beneficiário dos investimentos do setor estatal. Não é o setor privado que investe primeiro, é o estatal. A dependência do setor privado foi superada.”
Agentes da sociedade, não do capital
Na China, ensina Jabbour, existe uma classe de profissionais formada por economistas e engenheiros de projetos que somam duas milhões de pessoas que têm duas tarefas. A primeira é que o país tem que cumprir as metas de alcançar os países capitalistas do ponto de vista da alta tecnologia. A outra função é de garantir que o desemprego seja uma circunstância restrita ao capitalismo e que o socialismo supere essa circunstância.
“Na China, um economista de projeto e um engenheiro de projeto são obrigados a trabalhar também para a sociedade gerando condições, prevendo circunstância e abrindo novos campos de acumulação para a geração de, nos últimos 10 anos, 13 milhões de empregos urbanos. Nos próximos 5 anos, 13 milhões de empregos urbanos por ano.”
Socialismo Criativo
Na definição de Jabbour, o socialismo não é um modo de produção completo sobre o qual se sabe como funciona, que já tenha regras de funcionamento e leis de movimento. Para ele, o socialismo ainda é muito recente, tem apenas 100 anos.
Hoje, define o professor, o socialismo seria na forma histórica como se apresenta ao mundo, a partir da China em particular, como contraponto ao capitalismo. O socialismo chinês se apresenta como transformando a razão em instrumento de governo.
“A China é uma sociedade guiada pela ciência, ao contrário do capitalismo mundial, que é pura irracionalidade. A forma histórica com a qual o socialismo se apresenta ao mundo hoje é a da transformação da razão em instrumento de governo.”
Confira a live na íntegra: