O caso da menina de 11 anos resgatada após dar à luz em casa e sofrer complicações pós-parto, na semana passada, em Duque de Caxias, causou tanto choque quanto o de uma menor da mesma idade que, em Santa Catarina, teve de se submeter no mês passado a um aborto legal. São histórias de infâncias que ficaram traumatizadas e terminaram de forma diferente. Mas estão longe de serem incomuns. Dados do Ministério da Saúde, compilados por uma reportagem do jornal O Globo, mostram que 710.075 meninas de até 14 anos se tornaram mães no Brasil de 1994 a 2021. É como se, a cada dia, 69 crianças ou pré-adolescentes tivessem gerado um filho.
As estatísticas de partos de menores de 14 anos mostram que os números têm caído desde 2014. Ainda assim, a quantidade impressiona. Com 17.316 registros, 2021 é o ano com a menor quantidade da série histórica. O pico ocorreu em 2000, quando 28.973 garotas se tornaram mães antes de completarem 14 anos. O Ministério da Saúde informou que ainda não há dados disponíveis em relação a 2022, pois os números ainda não foram consolidados pela pasta.
Pela lei, o ato sexual com menores de 14 anos é crime, independentemente do contexto em que aconteça. Segundo a Polícia Civil, a menina de 11 anos de Duque de Caxias era mantida em cárcere privado e sofria abusos sexuais recorrentes do padrasto. A situação da garota só veio à tona após ela ser levada a um hospital. No caso da menina de Santa Catarina, ela tinha relações com outro menor. Inicialmente, o aborto legal foi impedido por uma juíza e no próprio Hospital Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina, onde a família da criança buscou ajuda. O hospital só realizou o procedimento depois de uma recomendação do Ministério Público Federal.
Riscos para mãe e filho
Especialistas alertam que os riscos de saúde e para o desenvolvimento psicossocial da gravidez infantil são inúmeros, tanto para a vítima quanto para o recém-nascido:
“Considero muito grave. É um rolo compressor de questões que vão desde o físico até o comportamental e psíquico e um problema sério de saúde pública”, avalia a professora de Pediatria da Universidade de Brasília Marilúcia Picanço.
De acordo com o Código Penal, todo ato sexual com menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, com pena de oito a 15 anos de reclusão. A Justiça considera que jovens até essa idade não têm condições de dar consentimento à relação. Por isso, a presunção de violência tem sido absoluta em casos desse tipo em decisões proferidas em tribunais brasileiros, e a menor de Santa Catarina é considerada vítima de estupro de vulnerável. O menor com quem tinha relações também foi considerado vítima do mesmo crime no inquérito policial que investigou o caso, pelo mesmo motivo: ainda não tem 14 anos.
De acordo com números oficiais do Ministério da Saúde, houve ao menos 385 mortes maternas (do início da gestação ao fim do puerpério, que vai até 42 dias pós-parto) e 13 óbitos maternos tardios (de 43 a 365 dias) entre meninas de 5 a 14 anos no Brasil de 1996 a 2020 — a série histórica é a mais recente disponível. São mais de 16 vidas ceifadas por ano, em média.
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A menina de 11 anos de Duque de Caxias, por exemplo, tinha direito ao aborto legal por ter sofrido estupro e pelo risco que uma gravidez tão precoce provoca à própria vida. O aborto, contudo, tem sido dificultado em unidades de saúde e até nos próprios tribunais.
“Tudo é muito complexo e desolador, mas a primeira tentativa é a de restabelecer os laços entre a menina e a família, na medida em que esse ambiente se mostrar seguro e em condições. Caso isso não seja possível, o destino seria a adoção, tanto da menina, quanto do recém-nascido”, recomenda a advogada criminalista e pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Soraia Mendes.
O padrasto, que está preso desde domingo, é o principal suspeito do caso, investigado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Agora, a Vara da Infância, da Juventude e do Idoso de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, determinou que a criança e o bebê sejam levados para abrigos:
“O Estado deve oferecer o melhor acompanhamento possível em termos multidisciplinares para ela. Com uma criança, vítima de uma violência tão séria, será necessária a intervenção psicológica, do serviço social e tudo mais. O grande problema é garantir isso tudo em condições de abrigamento ou mesmo estando com a família”, finaliza Mendes.
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No caso de Santa Catarina, os desdobramentos depois do aborto legal mostram que ainda há resistências ao direito para essas menores. A deputada estadual Ana Campagnolo (PL), apoiadora do presidente Jair Bolsonaro, crítico da interrupção da gravidez, conseguiu 21 assinaturas na Assembleia Legislativa para uma CPI sobre o aborto.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) informou que orientações quanto à gravidez na adolescência competem à da Saúde. A pasta, por sua vez, respondeu que traça ações para reduzir a gravidez na adolescência por meio da Ação Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência vinculada à Rede de Atenção Materna e Infantil (Rami), junto a estados e municípios. As ações incluem a “educação abrangente para a sexualidade responsável”, como contraceptivos.
“É importante destacar que crianças e adolescentes abaixo de 14 anos de idade estão sob proteção do artigo 217-A do Código Penal, que trata de relações com vulneráveis. Os profissionais de saúde são orientados para identificação, cuidado, notificação e acionamento da rede de proteção, nos casos de violência sexual”, diz a nota.
Com informações do Jornal O Globo