Criada em 1967, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem como missão “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. Na prática, principalmente nos três últimos anos do governo de Jair Bolsonaro (PL) o que assistimos é um desmonte acentuado da instituição. O que gera um aumento da violência e ameaças a indígenas, ambientalistas e servidores federais.
É o caso do indigenista Bruno Araújo Pereira, que desapareceu no dia 05 de junho enquanto percorria ao lado do jornalista inglês Dom Phillips, a região do Vale do Javari.
Leia também: Esposa de Dom Phillips afirma que corpos de jornalista e Bruno Pereira foram encontrados
De acordo com funcionários do órgão, o enfraquecimento ocorre há anos e antecede a gestão de Bolsonaro. Porém, nos três últimos anos, os casos de violência contra indígenas cresceu 61% com 182 casos em 2019 e 2020.
Já em 2016, meses após Michel Temer assumir o governo federal, a Funai teve um corte de 37% em seu orçamento. Em março do ano seguinte 51 coordenações técnicas locais na Amazônia foram extintas. Entre elas, a que existia no Vale do Javari.
No último ano, em razão da pandemia, houve um discreto aumento no orçamento e a contratação de funcionários temporários. O que não amenizou a situação de abandono do órgão.
Inicia-se também um cenário de perseguição dentro da Fundação, possivelmente motivado pelo incentivo que esse governo federal dá a garimpeiros, pescadores e madeireiros ilegais.
Bruno Pereira, por exemplo, foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato em 2019. Logo após Bolsonaro assumir o governo.
A saída foi atribuída à pressão de setores ruralistas apoiadores de Bolsonaro. Desde a exoneração, ele tirou uma licença não-remunerada e passou a atuar na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Nos últimos meses, Bruno vinha recebendo ameaças constantes de pescadores ilegais, responsáveis por retirar diariamente toneladas de peixes pirarucu e tracajás dos rios locais.
Para o servidor da Funai, Gustavo Vieira, a exoneração de Bruno foi uma maneira de interromper o trabalho que ele vinha desenvolvendo contra o garimpo ilegal. Os dois trabalharam juntos nos 14 meses que Bruno passou em Brasília no comando da coordenação de indígenas isolados.
Leia também: Desaparecimento de Bruno e Dom é responsabilidade direta de Bolsonaro
“O Bruno atuava contra essa máfia de criminosos, traficantes, madeireiros e pescadores ilegais lá no Vale do Javari. E um mês antes de ser exonerado ele coordenou uma ação que, junto com a Polícia Federal, explodiu 60 balsas de garimpo e logo na sequência Bolsonaro pede para que não fossem destruídos esse material de ilícitos e a pressão cresce”, disse ao Socialismo Criativo.
“Logo na sequência, Marcelo Xavier entra na presidência da Funai, exonera o Bruno e coloca um missionário evangélico para cuidar da questão dos índios isolados, que tinha como objetivo catequizar os índios isolados”
Gustavo se refere ao teólogo e antropólogo, ex-missionário da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização estadunidense que promove a evangelização de indígenas brasileiros desde os anos 1950. 7″Uma das missões deles era traduzir a bíblia para todas as línguas indígenas. O fato é que a situação ficou tão insustentável que o Bruno pediu a licença não remunerada para fazer o trabalho voluntário na Univaja”, complementa.
Leia também: Jornalista inglês e indigenista continuam desaparecidos no Vale do Javari
Com a saída do Bruno, o trabalho de repressão ao garimpo ilegal que vinha se fortalecendo se torna fraco e, licenciado da Funai, o indigenista se torna alvo de ameaças e perseguições na região.
“Com Bolsonaro houve um estímulo do Estado contra o próprio Estado e o Bruno se tornou vítima dessa ordem de matar que Bolsonaro acaba dando quando diz que não vai demarcar terra e que os índios tem mais é que plantar soja”, lamenta.
Estrutura precária e ineficaz
De acordo com informações oficiais da Funais, entre 2019 e 2021 foram investidos cerca de R$ 82,5 milhões em ações de fiscalização. Informou ainda que solicitou a realização de um concurso público para preenchimento de 1.043 cargos neste ano.
Porém, a saída de Bruno não foi um fato isolado. Outros três funcionários em posição de comando também deixaram os cargos no governo de Bolsonaro.
César Augusto Martinez, que estava à frente da Diretoria de Proteção Territorial; Oscar Romero de Lima Marcico, então coordenador-geral de Promoção dos Direitos Sociais e João Francisco Goulart dos Santos, coordenador de Gestão Estratégica, pediram para sair.
Em 2021, de acordo com informações do Portal da Transparência, menos de 5% das despesas da Funai foram destinadas a assistência aos povos indígenas.
A maior parte do recurso foi empregada em despesas administrativas. Diante do desmonte, também em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a Funai contratasse 776 servidores temporários para implantação de barreiras contra invasores na Amazônia. O certame aumentou 553 servidores no quadro.
Bolsonaro endossa “permissão para matar”
Com o enfraquecimento da fiscalização, não apenas da Funai, mas de outros órgãos responsáveis por fiscalizar a região, ocorre um aumento da violência. Indígenas, indigenistas, ambientalistas e profissionais que atuam na defesa da Amazônia e dos direitos humanos se tornam mais vulneráveis.
Em outubro de 2019, logo após a exoneração de Bruno Pereira, o servidor Maxciel Pereira dos Santos, que trabalhava na frente de proteção do Vale do Javari, foi assassinado com dois tiros na cabeça em Tabatinga.
Um mês depois, o coordenador da área, Francisco Gouvea, pediu demissão. Ele alegou “precarização dos meios para o atendimento de nossa missão institucional de proteção dos direitos dos povos indígenas” no território.
Somente naquele ano, a base do Vale do Javari sofreu quatro ataques. O último deles foi um ataque a tiros em dezembro, próximo aos rios Itaquaí e Ituí, onde Bruno e Dom Phillips desapareceram.
“A perda é muito grande porque o Bruno era um amigo pessoal, foi meu chefe durante um tempo e foi muito ativo na luta para que a Funai permanecesse inteira, enquanto Bolsonaro tentava fatiar aa fundação e diluir dentro de outros órgãos. E esse foi um dos motivos pelo qual ele caiu com o apoio do Marcelo Xavier”, lamenta o indigenista Gustavo Vieira.
Outros servidores da Funai, que preferem não se identificar, endossam a posição de Gustavo e afirmam que a responsabilidade pelo ocorrido com Bruno e Dom Phillips é tanto de Bolsonaro quanto de Marcelo Xavier.
“O Estado parou de dar força, de oferecer condições para que ações de fiscalização continuassem ocorrendo. Isso fortaleceu as organizações criminosas, que passaram a agir sem medo”, finaliza.
Marcelo Xavier se manifestou poucas vezes sobre o desaparecimento de Bruno e Dom e tentou responsabilizar as próprias vítimas por supostamente terem se colocado em risco.
Xavier é delegado federal e foi indicado para assumir o cargo por integrantes da bancada ruralista no Congresso Nacional.