A cada seis horas, uma mulher é vítima de feminicídio no Brasil. Em 2019, as delegacias brasileiras registraram 1530 homicídios de mulheres em razão do gênero. Os dados são de um levantamento inédito feito pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e a ONG de direitos humanos Habra, que será publicado semana que vem.
Esse volume representa um aumento de 20,1% em relação a 2018, quando foram registrados 1.222 casos de feminicídio.
Os estados da Bahia (186), São Paulo (182) e Pará (175) são os que apresentam o maior volume de feminicídio no país. Já Tocantins (5), Rondônia (6) e Roraima (7) apresentam o menor número de assassinato de mulheres com essa qualificadora.
As regiões Sul, Sudeste, Bahia e Pernambuco formam um “paredão” do feminicídio, concentrando os Estados com o maior volume de homicídios de mulheres em razão do gênero.
O estudo foi realizado a partir de dados fornecidos pelas secretarias de Segurança Pública e de Polícia Civil das 27 Unidades Federativas e consolida as informações sobre violência doméstica, estupro, importunação sexual, crime contra a honra de mulheres e o feminicídio.
A lei 13.104/15, mais conhecida como Lei do Feminicídio, alterou o Código Penal brasileiro, incluindo essa qualificadora quando o homicídio for cometido contra a mulher em decorrência do gênero ou de violência doméstica. É uma resposta penal a um crime que tem tirado a vida de milhares de mulheres.
Casos como o da empresária Lucilene Galdino Albuquerque, de 51 anos, foi morta a facadas pelo companheiro dentro de casa em março do ano passado, na cidade de Itapipoca, na Região Norte do Ceará. Segundo a polícia, o homem esfaqueou a vítima durante uma discussão motivada por ciúmes.
Ela foi atingida por diversos golpes de faca. Depois de assassinar a empresária, o agressor tentou matar o filho e o sobrinho dela, que também estavam dentro da residência.
Por que é importante nomear o feminicídio?
Criar a qualificação do homicídio de mulheres como feminicídio visibiliza um tipo de crime marcado por uma especificidade, até então era invisibilizado pela história da nossa cultura, que é o assassinato de mulheres pelo simples fato de ser mulher.
A antropóloga, pesquisadora da Anis e professora a UnB, Débora Diniz defende que a nomeação do crime de feminicídio é uma forma de classificação no campo jurídico e reconhecimento no campo sociológicos dos estudos de gênero.
“Nomear é uma das formas de realizar os fenômenos. Quando nós falamos ‘homicídio’ nós temos um tipo de vítima na cabeça. Ao nomear de outra maneira – feminicídio – nós apontamos para o fenômeno que queremos modificar, que são as mortes de mulheres em situações onde não esperaríamos: nas relações afetivas, nas relações amorosas, nas relações de cuidado. São mortes evitáveis de mulheres”.
Débora Diniz
Na mesma linha, a coordenadora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília, Valeska Zanello, acredita que o principal motivador desse crime são as hierarquias de gênero, o que aponta para o sexismo e o machismo da cultura brasileira. “O feminicídio é um sintoma do quanto a nossa cultura está adoecida, sobretudo as nossas masculinidades”, afirma.
Zanello lembra que a nomeação do crime é importante para visibilizar e quantificar para conhecer a incidência.
“A gente precisa de um bom diagnóstico para pensar em um bom tratamento. É preciso entender o que está envolvido nesses crimes e pensar em formas de intervenção social. Para enfrentarmos a violência contra a mulher – em especial a sua expressão máxima na forma do feminicídio – a gente precisa de um projeto de educação”, defende.
Valeska Zanello
Por que existe tanto feminicídio no Brasil?
Os números apontam um crescimento de 20,1% de feminicídio em 2019 comparando com 2018.
No entanto, ainda há muita fragilidade no enquadramento dos casos de feminicídio pelas autoridades policiais, o que pode esconder um quadro ainda pior.
Muitos delegados não consideraram a qualificadora nos casos de mulheres que morreram em decorrência de agressões físicas em ambiente doméstico, mas se enquadraram no tipo penal “lesão corporal com resultado morte”, previsto no art. 129, § 3º do Código Penal brasileiro.
“O que nós sabemos sobre o feminicídio no Brasil está relacionado aos dados mais recentes nos mostram que houve um crescimento no número de registros. Há aqui uma controvérsia científica. Será que o feminicídio está aumentando ou está crescendo a nossa capacidade de nomear e notificar o crime?”
Débora Diniz
Débora reconhece que há um crescimento do feminicídio do Brasil, dado as melhores formas de registro e a maior atenção à notificação. “No entanto, há ainda, sem sombra de dúvida, uma cifra oculta. O sistema policial e investigativo ainda é muito patriarcal. Assim como há homens que matam mulheres, há um regime de poder que resiste à nomeação e ao apontamento da origem desse problema”, avalia a antropóloga.
Ela lembra que as relações desiguais de gênero são formas patológicas de controle das mulheres pelos homens.
“Eu tenho certeza que há subnotificação dos casos no Brasil, embora nenhum cientista possa apontar o quanto representa essa subnotificação”.
Débora Diniz
Masculinidade adoecida
A arma mais utilizada para assassinar as mulheres foi a faca. “É uma arma fácil de ser adquirida e carrega alguns requintes de crueldade. Não se mata apenas com um facada, mas várias”, analisa Zanello.
“A masculinidade no Brasil tem como pilar central a misoginia”, denuncia Valeska Zanello. Segundo a pesquisadora, essa misoginia tem algumas características específicas. “Uma delas é a objetificação das mulheres e a outra é o controle. Para um homem ‘se sentir homem’ é estar no controle da situação”.
A misoginia também aponta para uma distribuição desigual de poder. O ciúmes é um dos principais motivadores do feminicídio. No entanto, quando se investiga as histórias por trás desses episódios, o que se percebe é uma falta de controle sobre aquela mulher.
“Ela disse um ‘não’, ela terminou, ela se apaixonou por outra pessoa. É tudo aquilo que coloca a mulher em xeque a mulher como uma subjetividade que vai além do controle desse homem. É triste, inclusive, ver que algumas mulheres romantizam o ciúmes”.
Valeska Zanello
A palavra “ciúmes”, inclusive, é um dos termos mais citados em processos judiciais. Levantamento do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) mostra que em 67 mil processos relacionados à Lei Maria da Penha tramitam no Judiciário de Goiás, sendo 280 deles de feminicídio, há atos judiciais, despachos e sentenças a palavra ciúmes é citada 51.760 vezes.
Para Zanello, quando o homem percebe que não tem o controle sobre a mulher, o máximo que ele pode fazer é transformar essa mulher em um objeto morto. “O feminicídio é um sintoma de masculinidade hegemônica profundamente adoecida”, afirma.
Como combater o feminicídio?
Quando se fala sobre feminicídio e se discute sobre o crescimento nos casos registrados, a pergunta imediata é “o que podemos fazer para combater?”.
Para além do campo criminal – que é posterior à perda da vida – especialistas apontam que é preciso investir em políticas públicas de eliminação da violência contra mulher e educação para evitar os feminicídios.
Débora Diniz lembra que as políticas públicas são ações de longo prazo, persistentes e que atravessam diferentes equipamentos do Estado, como saúde, educação e segurança pública.
Para criar políticas públicas é preciso orçamento. “Ao mesmo tempo que temos as maiores taxas de feminicídio registradas, temos um governo que eliminou do orçamento os recursos para combater a violência doméstica, compactuando com esse quadro de vulnerabilização das mulheres e com o feminicídio”.
Valeska Zanello concorda que a resposta judiciária é importante, mas não deve ser a única para combater esse fenômeno. “O judiciário vai ficar enxugando gelo. É preciso campanhas de conscientização – que ajudem na visibilização do feminicídio – e, principalmente a reeducação”, aponta.
Entre as medidas está a obrigatoriedade para homens autores de violência contra a mulher ou que tentaram o feminicídio passem por grupos masculinos e a necessidade de se discutir as relações de gênero nas escolas.
Em Brasília há um projeto pioneiro para debater o assunto em sala de aula. O Projeto Maria da Penha Vai à Escola é uma ação que integra o eixo comunitário do Núcleo Judiciário da Mulher (NJM) do TJDFT e tem como objetivo “educar para prevenir e coibir a violência contra a mulher”.
Ótimo artigo! Maioria das vítimas de violência doméstica e de feminicídio tem em comum uma história de relacionamento abusivo, que se desenvolveu ao longo dos anos. Reportagem mostra como identificar essas fases da violência.
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