A cultura e as tradições indígenas vem sendo, ano após ano, perdida no Brasil e um dos fatores de maior relevância nesse processo é a extinção de línguas indígenas. Atualmente, existem 274 línguas indígenas no Brasil. Deste número, que sofre queda desde o início da colonização portuguesa — haviam mais 1,2 mil antes do período pré-colonial —, 190 correm risco iminente de desaparecer, segundo o Atlas das Línguas em Perigo, da Unesco.
O número representa a morte de mais de 90% das línguas de povos tradicionais no país. Segundo o estudo, o Brasil é o terceiro país com o maior número de línguas ameaçadas de extinção.
Contudo, os números podem ser ainda piores: a versão online do Atlas foi atualizada em 2017, e a situação pode ter piorado de lá pra cá com a pandemia da Covid-19 e ações nefárias do governo de Jair Bolsonaro.
“São vários os motivos para que isso ocorra: o contato com outras culturas, a idade avançada dos falantes e a falta de valorização dos povos indígenas influenciam para que as línguas acabem desaparecendo ao longo do processo histórico”, explica Myriam Tricate, coordenadora nacional do Programa de Escolas Associadas (PEA), braço da Unesco nas escolas de educação básica de todo o mundo.
A preservação de terras indígenas é crucial para entender o processo de desaparecimento das línguas nativas, pois, sem um território próprio, é quase impossível manter viva a cultura dessas comunidades.
O artigo 231 da constituição brasileira afirma que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Entretanto, existem projetos de lei que visam reduzir significativamente os territórios indígenas ou que permitem a exploração nesses locais, indo contra o que deveria ser prioridade para a preservação da cultura e das línguas indígenas.
A culpa de Bolsonaro
Se tem algo que podemos dizer que o presidente Jair Bolsonaro (PL) cumpriu foi a agenda genocida contra os povos originários do Brasil. Em sua campanha para conseguir o cargo máximo do Executivo nacional, ele prometeu “não demarcar nenhum centímetro de terra indígena”.
E seu ódio contra os ‘verdadeiros donos das terras tupiniquins’ que hoje habitamos, o mandatário afirmou, em 1998, que era uma “pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”. Agora, ocupando o Palácio do Planalto, ele continua a travar uma guerra maquiavélica.
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Bolsonaro retirou da Fundação Nacional do Índio (Funai) a competência de demarcar terras indígenas e entregou a atribuição de presente para o Ministério da Agricultura, sempre muito influenciado por ruralistas, que disputam as terras com indígenas.
O governo federal também transferiu a Funai do Ministério da Justiça, onde sempre esteve, para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado por Damares Alves.
E mesmo com protestos dos povos indígenas e vetos do Congresso Nacional, o mandatário conseguiu reveter a estratégia e agir na “surdina”, facilitando a regularização de terras invadidas e estimulando a mecanização da lavoura dentro das terras indígenas. No mesmo período, o governo também passou a incentivar a introdução da lógica do agronegócio nas comunidades, o que as organizações indígenas rechaçam como sendo algo que destrói as culturas originárias.
O resultado destas ações ficaram evidentes neste ano. Em março, um militar indicado pelo governo para chefiar uma unidade da Funai no Mato Grosso foi preso por comandar um esquema de arrendamento ilegal de terras indígenas. Em uma terra demarcada foram encontradas 70 mil cabeças de gado pertencentes a fazendeiros da região.
A indicação de militares para cargos de chefia foi muito prejudicial aos indígenas. Em fevereiro de 2021, 60% das coordenações da Funai na Amazônia eram chefiadas por militares. Eles substituíram indigenistas experientes e tornaram a gestão menos democrática e mais ineficiente.
O clima de “pode tudo” intensificou os conflitos no campo. Segundo o Conselho Missionário Indigenista (Cimi), em 2020, foram 182 assassinatos de indígenas, 63% mais do que em 2019, quando 113 indígenas foram assassinados.
Ataques genocidas durante a pandemia
Durante a pandemia da Covid-19, o governo de Bolsonaro foi acusado, por diversas vezes, de negligência contra os povos tradicionais. As próprias comunidades se organizaram para formar barreiras sanitárias e impedir a entrada de não indígenas.
Indígenas que não vivem em aldeias só foram incluídos no grupo prioritário do Plano Nacional de Enfrentamento à covid porque organizações indígenas se mobilizaram e foram ao Supremo Tribunal Federal (STF). Antes disso, quase metade da população indígena tinha ficado de fora do planejamento.
A cloroquina, que o Bolsonaro disse ser a solução mágica para a pandemia, foi entregue aos montes para os distritos de saúde indígena. Só a unidade da terra Yanomami, em Roraima, recebeu o equivalente a 10 comprimidos por habitante.
Por tudo isso, os povos originários fizeram pressão para que o governo Bolsonaro fosse acusado de genocídio indígena pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia do Senado. Mas os senadores não aceitaram, e o governo se livrou da acusação.
A tragédia causada pelo garimpo ilegal
Enquanto tudo isso acontecia, o governo incentivava o garimpo ilegal em terras indígenas. Bolsonaro visitou a Terra Indígena Yanomami, assolada pela mineração, e defendeu a atividade, contrariando as lideranças indígenas presentes.
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O governo federal editou um decreto para estimular o que chamou de “mineração artesanal”, um eufemismo para garimpo ilegal. Isso sem falar na tentativa de passar por cima da Constituição para permitir o garimpo e grandes projetos de infraestrutura em terras indígenas, por meio do Projeto de Lei (PL) 191/2020.
No território Yanomami, o garimpo provoca uma verdadeira tragédia social. Um relatório produzido pela associação que representa os indígenas descreveu um cenário de aumento de doenças, mortes, desnutrição e até abusos sexuais contra mulheres e crianças em troca de comida.
Para piorar, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, disse que os garimpeiros são tão vítimas quanto os indígenas, já que eles trabalham em condições insalubres.
Esse contexto de estímulo a invasões ficou bem evidente nos dados do desmatamento. Nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, a destruição da floresta em terras indígenas aumentou quase 140% em relação aos três anos anteriores.
Todas essas ações fazem parte da agenda genocida do governo federal em extinguir os povos tradicionais. E com a morte de cada indígena, é um triste passo a mais para a morte de uma cultura, tradição e língua daqueles que um dia foram os grandes donos das terras brasileiras.
Peça-chave contra crise climática
De acordo com um relatório produzido em março do ano passado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês), povos indígenas são peça-chave na luta contra a crise climática do planeta e os melhores guardiões das florestas tropicais. O documento, que destaca a capacidade destes de reduzirem as taxas de desmatamento, de perda de biodiversidade e de evitar emissões de CO2, também faz um apelo pela sobrevivência dos povos originários.
Criada há mais de 75 anos para combater a fome e buscar a segurança alimentar no mundo, esta é a primeira vez que a FAO produz um documento dedicado ao papel dos indígenas com base em evidências científicas — mais de 300 publicações foram consultadas.
“Está claro que a situação dos indígenas e populações tribais se tornou urgente”, justifica David Kaimowitz, especialista da agência da ONU e um dos autores.
A urgência surge diante da eclosão de políticas, econômicas, geográficas e culturais que colocam os territórios indígenas em xeque, agravadas pela pandemia da Covid-19. Esse cenário está diretamente ligado ao aumento da demanda por alimentos, energia, minérios e madeira, além de projetos de infraestrutura.
A cobiça pelo controle dos recursos naturais coloca os povos e seus territórios sob pressão, e os impactos ambientais e sociais dessa ameaça que recai sobre esses cuidadores das florestas serão desastrosos, alerta o relatório.
“A pandemia nos fez mais conscientes dos perigos de não responder prontamente aos problemas. E esse é um momento importante, em que estamos vendo que é preciso enfrentar a crise climática e da biodiversidade. Os indígenas são parte da solução”, adiciona Kaimowitz.