Mesmo com a grande adesão do brasileiro ao PIX e às formas mais sofisticadas de pagamento, seja por cartão magnético ou transações eletrônicas, o uso do dinheiro vivo ainda resiste entre as classes mais baixas. Segundo pesquisa realizada pelo instituto de pesquisa Locomotiva, o papel-moeda permanece como a forma mais utilizada para pagar as contas de consumo — como água, luz, aluguel—, nas classes D e E, com 72% das preferências.
O principal motivo é ter maior controle financeiro sobre o dinheiro, mas também pesa o medo de ser taxado pelos bancos e golpes aplicados em contas digitais. Segundo o levantamento, 45% dos bancarizados afirmam sacar de uma vez tudo o que recebem para fugir das tarifas.
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E enquanto a parcela com maior poder aquisitivo opta por andar com quase nenhum dinheiro em espécie, se beneficiando das novas tecnologias de transação monetária, o que acontece com àqueles no qual a tecnologia não chega? A pandemia de Covid-19, ao fazer o governo distribuir auxílios, colaborou para que parte dessa população entrasse de alguma maneira no sistema bancário com aplicativos como Caixa Tem, mas ainda há obstáculos.
Vulneráveis mais vulneráveis
O presidente do Instituto Locomativa, Renato Meirelles, acredita que é preciso diferenciar os impactos da digitalização sobre os ambulantes e pequenos negócios informais e os impactos sobre quem vive na extrema pobreza — ainda que uma ou outra pessoa em situação de rua já use PIX para receber dinheiro.
De forma geral, enquanto para os trabalhadores da economia informal meios digitais funcionam como um facilitador para os negócios, nas parcelas mais vulneráveis isso pode ser um complicador, especialmente na camada mais baixa da pirâmide social.
É o que se vê na maior cidade do país, São Paulo, onde 31.884 pessoas vivem em situação de rua, segundo o Censo Pop Rua, levantamento realizado em 2021 pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de SP. Desse total, 13,6% dizem pedir dinheiro como forma de obter renda.
“A menor circulação de papel-moeda pode, sim, afetar a dinâmica de renda dessa população. Estamos falando de aproximadamente 4 mil pessoas nessa condição somente em São Paulo. Por isso, as portas de saída [da condição de rua] são urgentes”, afirma o secretário Carlos Bezerra Júnior. O Censo Pop Rua também mostra que 27% das pessoas em situação de rua trabalham catando recicláveis e 18,9% não fazem nada para obter renda.
Popularidade do PIX
Atualmente, o PIX conta com uma quantidade de transações que chegou à casa de 1,6 bilhão por mês, segundo dados relativos a março de 2022, passado pouco mais de um ano que o sistema de transferência foi criado.
Em fevereiro, o PIX passou a ser o principal meio de pagamento em quantidade de transações, liderança que ampliou em março: foi responsável por 1,6 bilhão de transações, em comparação com 1,5 bilhão de crédito; 1,3 bilhão de débito; 311 milhões de boleto; 88 milhões de TED e 21 milhões de DOC, TEC (transferência especial de crédito) e cheque. Um ano atrás, o Pix somava 746 milhões de transações e perdia para crédito e débito.
O sucesso da ferramenta chegou a fazer com que o governo até buscasse tirar proveito político, referindo-se a um dos auxílios planejados para contrabalançar a alta dos combustíveis como “PIX Caminhoneiro”, ainda que tecnicamente o projeto não seja de uma mera transação por PIX.
Um passo para frente, dois para trás
Embora exaltem os benefícios do PIX, alguns especialistas consideram que ainda é cedo para comemorar a inclusão financeira. Os professores de economia Guilherme Mello, da Unicamp, e Antonio Lacerda, da PUC-SP, veem no PIX uma forma louvável de o setor público reduzir os custos de transação para as empresas e as pessoas, a partir de um instrumento da autoridade monetária que é o Banco Central.
Isso porque a modalidade ajuda a substituir transferências sobre as quais há cobrança de taxas, como TED e DOC, e também as maquininhas de cartão.
Mas esse advento, que acaba servindo como uma porta de entrada para as finanças digitais e a bancarização, também impõe desafios, na medida em que falta, por grande parte da população brasileira, o letramento necessário para navegar nos produtos bancários sem incorrer em aumento de endividamento. Sem falar no analfabetismo funcional.
Este é um dos motivos pelos quais Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV), afirma que bancarização não é sinônimo de inclusão financeira.
“Para que de fato gere desenvolvimento, a inclusão precisa ser considerada em três âmbitos: acesso, uso e qualidade”, diz. A pessoa pode até acessar o sistema, mas não usá-lo, ou usá-lo sem que isso se reverta em melhoria da qualidade de vida. “Um exemplo clássico é olhar quem está no Cadastro Único. Muitas dessas pessoas pobres ou extremamente pobres têm ou poderiam ter conta, mas não veem muita utilidade nela. A pessoa pode não estar só incluída ou excluída: ela pode estar mal incluída”, explica.
PIX e a exclusão digital
Segundo economistas, se a transição para meios de pagamentos digitalizados não for bem conduzida, será posta mais uma barreira de exclusão social, considerando que no Brasil 47 milhões de pessoas ainda não têm acesso à internet.
O professor da FGV lembra que a exclusão digital já havia afetado o acesso de muitas pessoas ao Auxílio Emergencial em 2020. De acordo com estudo de sua autoria, dos motivos para o não recebimento do auxílio pelas classes D e E — justamente as mais necessitadas —, 22% deveram-se a problemas de acesso à internet e 20% por falta de aparelho celular.
A China é citada como um exemplo de economia cashless, tendo praticamente abolido o uso do dinheiro em espécie. Da gorjeta do garçom ao trocado do pedinte, as transferências são feitas com uso de código QR e do WeChat, o serviço local de mensagens instantâneas.
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Já na Índia, segundo Gonzalez, a retirada do dinheiro em espécie da economia, promovida pelo governo, causou transtornos.
“Houve uma ruptura grande em alguns circuitos de comércio locais pela ausência de papel-moeda”, diz ele, o que afetou notadamente os mercados informais, servindo como um alerta para o Brasil.
No Brasil, se a digitalização e a navegação no sistema financeiro são desafiadoras para os diferentes perfis das camadas populacionais de baixa renda, a recíproca é verdadeira. “Os bancos ainda não estão preparados para fazer uma ‘escoragem’ de crédito para essas pessoas”, afirma Meirelles, do Locomotiva, referindo-se à avaliação do risco nas operações de financiamento.
Isso explicaria por que a digitalização das transações financeiras — que cresceu no último ano de pandemia, impulsionada basicamente pelo Auxílio Emergencial —, não se refletiu, por parte das classes mais populares, em acesso a crédito, a seguros, a um investimento mínimo ou a uma conta que rendesse mais.
O resultado disso são perdas para os dois lados: os bancos deixam de operar em um nicho com demanda enorme, e os mais pobres acabam caindo em empréstimos com taxas exorbitantes. “Quem tem menos dinheiro paga mais juros”, diz Meirelles, o que não faz sentido, segundo ele, quando se vê que o nível de inadimplência nas classes baixas não é maior que nas demais faixas de renda.
“Na medida em que os bancos possuírem mais informações sobre os clientes, os modelos serão ajustados naturalmente, como já é feito atualmente”, afirma Vilain, da Febraban.
Segundo ele, a pandemia foi o maior exemplo de que os bancos já se ajustaram a uma nova realidade econômica e novos comportamentos do consumidor. “A questão dos clientes de baixa renda está muito mais relacionada à questão de assimetria de informações, pois não possuímos fontes de informações confiáveis ao prover crédito para esse segmento de clientes. A dificuldade de inferirmos os rendimentos e capacidade de endividamento desse segmento dificulta muito a aprovação de crédito. Precisamos reduzir a assimetria de informações”, afirma.
De baixo para cima
Para Meirelles, os bancos têm interesse em incluir essa clientela, mas não sabem como fazer. “Os bancos tentam ir para um lado, tentam ir para o outro, e então a inadimplência cresce. Não é trivial para eles.” Só os negativados movimentam cerca de R$ 800 bilhões por ano, segundo a Locomotiva. “Só que ninguém dá crédito para esses caras. Por acaso eles andam sem roupa, por acaso não comem? O modelo de escoragem está errado.” Segundo ele, uma mudança nesses critérios, especialmente no crédito produtivo, ajudaria a combater as desigualdades, fazendo a economia crescer de baixo para cima, e espalhando riquezas para toda a sociedade – inclusive os bancos.
Segundo Michel Alcoforado, fundador do Grupo Consumoteca e antropólogo especializado nas relações de consumo, os bancos terão de trabalhar a inclusão da baixa renda se quiserem continuar crescendo.
“A quantidade de usuários é fundamental para determinar o valuation do banco. Antigamente, a solução para aumentar o número de correntistas era comprar um outro player. Mas há muito tempo que ninguém compra ninguém, porque esse deixou de ser o melhor jeito. A melhor maneira agora é colocar gente [novos clientes] para dentro.”
Com informações do Valor Econômico.