O uso de parte dos recursos da educação para financiar o novo programa do governo de Jair Bolsonaro – o chamado Renda Cidadã ou Renda Brasil – pode impactar quase metade dos alunos brasileiros. O plano, divulgado na última segunda (28), é usar 5% dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), renovado neste ano, além de dívidas de precatórios.
No caso do Fundo, essa realocação apresentada pelo governo equivale a R$ 8 bilhões tirados por ano do maior mecanismo de financiamento de educação, dentro dos valores de hoje, segundo cálculos do Todos Pela Educação.
Municípios afetados por fins eleitoreiros
De acordo com as estimativas, 2,7 mil municípios e 17 milhões de alunos podem ser afetados com a perda dos recursos. É quase metade dos 39 milhões de alunos que a rede pública brasileira atende na educação básica. O maior impacto do uso do Fundeb no projeto será nos municípios e estados mais pobres, que dependem mais dos recursos.
O interesse do governo no Fundeb decorre do fato de o Fundo não ser incluído nos limites do teto de gastos. O governo vem afirmando que fará o Renda Cidadã sem furar o teto, mas economistas criticaram o uso do Fundeb tanto pelo corte em recursos já combinados para a educação, quanto pela tentativa de burlar extraoficialmente o limite de gastos.
A criação da renda social também vem sendo apontada como a principal a estratégia de Bolsonaro para criar uma marca de sua gestão que garanta o crescimento da sua popularidade para a reeleição, em 2022.
Acentuando a pobreza
O impacto maior nos mais pobres acontece porque são essas regiões que recebem recursos da União no Fundeb. Os estados que já conseguem, sozinhos, chegar a um valor mínimo por aluno, não recebem ajuda do governo federal via fundo.
Nas redes sociais, congressistas opositores da medida afirmaram que o projeto de usar recursos do Fundeb, “tira dos pobres para dar aos paupérrimos” — usando frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro anteriormente.
“Se isso realmente for aprovado, tudo que conquistamos com a promulgação da Emenda Constitucional nº 108/ 2020, pelo Congresso Nacional, estará em risco”, disse em nota a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).
Pelas regras atuais, a União é obrigada a adicionar 10% ao investimento total somado dos estados no Fundeb, dinheiro que vai para as regiões mais pobres. Com o novo Fundeb aprovado no Congresso em agosto, a complementação da União passará progressivamente a 23% até 2026.
Nove estados – todos das regiões Norte e Nordeste – recebem hoje dinheiro do Fundeb. O novo Fundeb aprovado neste ano também incluiu municípios pobres em estados ricos, ampliando a capacidade de redução de desigualdades do programa, segundo especialistas.
“Ampliar a rede de proteção social com aumento das transferências de renda é fundamental, mas isso não pode fragilizar políticas sociais que têm efeitos estruturais e complementares”, escreveu o Todos Pela Educação em nota.
Nome novo, proposta velha
O governo já havia tentado usar os recursos do Fundeb anteriormente. Nos últimos dias antes da votação da PEC do Fundeb na Câmara dos Deputados, em julho, a equipe econômica do ministro Paulo Guedes [Economia] e membros do governo tentaram convencer parlamentares do Centrão e aliados a usar recursos do Fundeb com o então Renda Brasil – que já era o nome anterior do programa, que deverá ser substituído pelo Renda Cidadã.
Após ser derrotado nessa articulação, o governo terminou cedendo. No fim, o presidente Jair Bolsonaro celebrou nas redes sociais e disse que seu governo era o responsável por aumentar os recursos do fundo da educação. Agora, tenta novamente usar o mesmo dinheiro.
O governo federal participou pouco dos debates sobre o Fundeb desde o começo dessa legislatura, em 2019, e a tramitação ficou majoritariamente a cargo do Congresso.
Quando o Fundeb foi votado, em julho e agosto, o governo ainda tinha menos apoio dos partidos do Centrão. Desta vez, governo e sua base no Congresso estão mais alinhados, o que pode fazer com que o plano de usar o dinheiro do Fundeb passe.
Centrão na retaguarda de Bolsonaro
O novo líder do governo na Casa é o deputado Ricardo Barros (PP-PR), que vem liderando as articulações para o Renda Cidadã. A proposta de usar recursos do Fundeb para o projeto já havia sido apresentada em julho, mas foi negada pelo Congresso
Na outra ponta, como o Fundeb com 23% de complementação foi aprovado quase por unanimidade na Câmara e no Senado, mudar a proposta menos de dois meses depois da aprovação – e com o mesmo plano do governo que já havia sido rejeitado antes – é uma tarefa difícil e controversa.
A proposta divulgada ontem gerou críticas de parlamentares de diversos espectros políticos nas redes sociais. O argumento mais presente é o de que o presidente Jair Bolsonaro estaria, assim, tirando “dos pobres para dar aos paupérrimos” — uma frase que o presidente citou ao dizer que deixaria o Renda Brasil de lado porque a equipe econômica vinha sugerindo cortar salários de aposentados para bancar o programa.
O Ministério da Educação (MEC) e o ministro Milton Ribeiro ainda não se pronunciaram publicamente sobre a perda de recursos. No Twitter, o ministro publicou hoje sobre um edital para vagas remanescentes do Fies, programa de financiamento estudantil.
Para que serve o Fundeb
O objetivo do fundo é garantir um investimento mínimo padrão por aluno na rede pública de todo o Brasil e reduzir a desigualdade entre regiões. Os recursos são compartilhados entre estados, municípios e União.
De acordo com um estudo da Câmara dos Deputados, sem a política de fundo, a desigualdade seria de 10.000% entre o maior e o menor valor investido por aluno nos municípios. Com o Fundeb, caiu para pouco mais de 500% — e a tendência é que diminua ainda mais com as mudanças no fundo.
A criação do Fundeb levou a uma drástica redução nas desigualdades regionais entre estados mais ricos e mais pobres do Brasil.
O apoio da União a estados e municípios na educação diante da crise do coronavírus será ainda mais crucial. Pela Constituição, são estados e municípios que cuidam das escolas na ponta, mas o governo federal tem papel de apoio financeiro e técnico. Estudo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e da Fineduca apontam que a educação pode perder mais de R$ 50 bilhões diante da crise.
As redes estaduais e municipais, mesmo quebradas na crise, também têm precisado fazer investimentos em tecnologia, planos de dados e outras ferramentas para alunos diante da pandemia.
Os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) neste ano mostraram também que estados com maior percentual de suas escolas atendendo alunos mais pobres tiveram notas piores. A redução dos recursos prometidos em relação ao aprovado na PEC do Fundeb, somada à crise do coronavírus, pode acentuar essa disparidade.
Com informações da Exame